Armando Alexandre dos Santos
Mostrei, no artigo da última semana, como o sistema das corporações de ofício medievais protegia os seus membros contra abusos que eventualmente uns artesãos pudessem exercer contra outros colegas. Todos podiam trabalhar honestamente, sem temer pressões econômicas ou concorrentes desleais. A única concorrência era a da qualidade do produto. Era um sistema que impedia a formação de monopólios, trustes ou açambarcamentos. Havia limites para o crescimento de cada elemento, de modo a não prejudicar os colegas.
Essas características do corporativismo medieval atraíram a simpatia até do insuspeito Karl Marx, por incrível que pareça. Transcrevi, no último artigo, dois textos dele, extraídos de “O Capital” muito expressivos.
Obviamente, Marx ignorou completamente, no estudo que fez das corporações de ofício, o aspecto espiritual e religioso. Em seu reducionismo materialista e economicista, a dimensão religiosa da vida das pessoas e das instituições não lhe parecia ter o menor interesse. No Medievo, entretanto, tudo se fazia com intensa nota religiosa, inclusive no mundo do trabalho. Cada corporação se erigia, pois, em forma de confraria religiosa, tendo um padroeiro ou patrono (preferencialmente um santo de alguma forma relacionado com sua própria profissão) e um estandarte com a efígie desse patrono, o qual, nas procissões públicas, desfilava desfraldado à frente dos profissionais daquela corporação. Os elementos das várias corporações se sentiam, de alguma forma, integrados a colegas que exerciam a mesma profissão em outras regiões; era até comum que um deles, quando em viagem, praticamente não tivesse despesas, porque tinha hospedagem e alimentação garantida nas casas e oficinas de seus colegas, que hospitaleiramente o acolhiam e alimentavam pelo tempo que fosse necessário.
Pode-se, pois, afirmar que o sistema corporativo medieval era extremamente eficiente, assegurando de modo equilibrado os direitos e cobrando o exercício dos deveres profissionais. Incorre em simplificação excessiva e distorce a realidade quem nele quer ver tão-somente um mecanismo de articulação econômica ou produtiva. Ele era, na verdade, muito mais do que isso. Ele era a aplicação, no campo específico do trabalho manual urbano, daqueles mesmos princípios que regiam a toda a organização da sociedade e da vida medieval, profundamente impregnada de religiosidade. Nas relações entre colegas de profissão membros de uma corporação de ofício, vigoravam os mesmos princípios da hierarquia, de senso de honra, da obrigação contraída pela mera palavra dada, que também vigoravam na sociedade feudal.
Um historiador clássico da economia medieval, o belga Henri Pirenne (1862-1935) chegou a ver uma relação de analogia entre o sistema corporativo e a arquitetura das imensas catedrais edificadas no mesmo período. Na sua ótica, somente uma sociedade capaz de edificar aquelas catedrais seria capaz de conceber e realizar um sistema econômico tão adequado e conveniente para atender às necessidades da pessoa humana. Passemos a ele a palavra:
“A economia urbana é digna da arquitetura gótica da qual é contemporânea. Ela criou (…) uma legislação social mais completa do que a de qualquer outra época, incluindo a nossa. Suprimindo os intermediários entre vendedor e comprador, assegurou aos burgueses o benefício da vida barata; perseguiu impiedosamente a fraude, protegeu o trabalhador contra a concorrência e a exploração, regulamentou o seu trabalho e o seu salário, velou pela sua higiene, providenciou a aprendizagem, impediu o trabalho da mulher e da criança, ao mesmo tempo que conseguiu reservar para a cidade o monopólio de fornecer com os seus produtos os campos envolventes e de encontrar lá longe saídas para o seu comércio. (Les Villes et les Institutions urbaines au Moyen Age, tomo I, p. 481).
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: Todos podiam trabalhar honestamente, sem temer pressões econômicas ou concorrentes desleais. A única concorrência era a da qualidade do produto. Era um sistema que impedia a formação de monopólios, trustes ou açambarcamentos.