Instituições previdenciárias na Idade Média

Armando Alexandre dos Santos

As corporações de ofício medievais exerciam, também, funções previdenciárias. Cada uma delas, além de zelar para que o ofício fosse bem exercido pelos seus membros, do ponto de vista profissional e técnico, também se responsabilizava pela assistência aos membros que envelheciam ou ficavam doentes, e garantiam auxílios às famílias cujos chefes precisassem, por qualquer motivo, ficar ausentes por algum tempo, ou que precisassem suspender as atividades profissionais por motivo de força maior. Também era de responsabilidade da corporação ajudar as famílias de membros falecidos que passassem por necessidades, e garantir a educação, dentro do próprio sistema corporativo, aos órfãos filhos de seus membros, assegurando o pagamento das quantias necessárias para que fossem educados por outros mestres habilitados e, assim, pudessem adquirir na vida a mesma condição do falecido pai.

Como tudo na Idade Média, o funcionamento das corporações era orgânico e profundamente consuetudinário. Ele conciliava segurança com responsabilidade, ele garantia proteção e dependência para seus membros, sem impedir que gozassem de ampla margem de autonomia individual. Mais uma vez citemos Régine Pernoud, que explica como funcionavam internamente as corporações, e como se equilibravam os direitos e os deveres de seus membros:

“Todos os membros de um mesmo ofício fazem obrigatoriamente parte da corporação, mas nem todos, bem entendido, desempenham aí o mesmo papel: a hierarquia vai dos aprendizes aos mestres-jurados, que formam o conselho superior do ofício. Habitualmente distinguimos aí três graus: aprendiz, companheiro ou servente de ofício e mestre; mas isto não pertence ao período medieval, durante o qual, até por meados do século XIV, se pode, na maior parte dos ofícios, passar a mestre logo que terminada a aprendizagem. (…) O aprendiz está ligado ao mestre por um contrato de aprendizagem (…) que comporta obrigações para as duas partes; para o mestre, a de formar o aluno no ofício, de lhe assegurar a casa e o sustento, sendo proporcionado o pagamento pelos pais das despesas de aprendizagem; para o aprendiz, a obediência ao mestre e a aplicação ao trabalho. Encontramos, transposta para o artesanato, a dupla noção de fidelidade-proteção que une o senhor ao vassalo ou ao rendeiro. Mas como, aqui, uma das partes do contrato é uma criança de doze a catorze anos, são empregues todos os cuidados para reforçar a proteção de que deve gozar, e enquanto se manifesta toda a indulgência para as faltas, as leviandades, mesmo até as vadiagens do aprendiz, os deveres do mestre são severamente precisados: não pode receber senão um aprendiz de cada vez, para que o ensino seja frutuoso e para que não possa explorar os alunos, descarregando sobre eles uma parte do trabalho; não pode encarregar-se deste aprendiz senão depois de ter exercido a mestria durante um ano, pelo menos, para que possa dar-se conta das suas capacidades técnicas e morais. (…) Os mestres estão submetidos a um direito de visita detido pelos jurados da corporação, que vêm ao domicílio examinar a forma como o aprendiz é alimentado, iniciado no ofício e tratado de maneira geral. O mestre tem para com ele os deveres e os encargos de um pai e deve entre outras coisas velar pela sua conduta e pelo seu comportamento moral; em contrapartida, o aprendiz deve-lhe respeito e obediência, mas vai-se ao ponto de favorecer por parte deste uma certa independência: no caso de um aprendiz sair de casa do mestre, este deve esperar um ano até poder receber outro, e durante todo esse ano é obrigado a receber o fugitivo se ele voltar – isto para que todas as garantias estejam do lado mais fraco, não do mais forte.

“Para passar a mestre, é preciso ter terminado o tempo de aprendizagem; este tempo varia conforme os ofícios, como é normal, e dura em geral de três a cinco anos; é provável que então o futuro mestre devesse fazer prova da sua habilidade face aos jurados da corporação, o que está na origem da obra-prima, cujas condições irão complicar-se no decorrer dos séculos; além disso, deve pagar uma taxa, aliás mínima (de 3 a 5 soldos em geral) como sua cotização para a confraria do corpo do ofício; finalmente, em alguns ofícios, cuja solvabilidade o mercador é obrigado a justificar, é exigido o pagamento de uma caução. Tais são as condições da mestria durante o período medieval propriamente dito; por volta do século XIV, as corporações, até aí independentes na sua maior parte, começam a ser ligadas ao poder central e o acesso à mestria torna-se mais difícil. (Luz sobre a Idade Média. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, p. 58)

É interessante notar, nesse texto de Régine Pernoud que acabamos de ver, o paralelismo entre o sistema feudal e o sistema corporativo: em ambos se dava a mesma relação de fidelidade-proteção. Assim como o senhor feudal podia contar com a fidelidade do seu vassalo ou do recomendado que se colocava em suas mãos, mas tinha a obrigação de protegê-los em todas as circunstâncias, assim também o mestre era servido pelo aprendiz que recebia em sua oficina, mas tinha graves obrigações em relação a ele.

Quem não toma em consideração essa vinculação profunda entre partes socialmente distintas e hierarquizada não compreende (e não pode compreender) o que foi a Idade Média.

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: Como tudo na Idade Média, o funcionamento das corporações de ofício era orgânico e profundamente consuetudinário.

 

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