Camilo Irineu Quartarollo
“Rogério, venha ver a travesti”. Eu fui e vi a peça teatral de Anselmo Figueiredo dirigida por Carlos ABC e a situação solitária e humana de uma travesti, o Cido. Melancólica, ela regride aos momentos de sua vida sofrida. Exorciza seus fantasmas, um dos quais é ela mesma. Adaptou-se com os seus iguais e sem voz na zona marginal, no limiar dos sonhos, cujas vivências cicatrizam velhas feridas e faz sua vida mais afirmativa, resignada e resistente. Resiste até à morte num mundo incerto e cruel em que vivem as travestis, de cujas mortes vis se transferem do obituário para a seção policial dos noticiosos.
O sonho de Cido é usar um vestido vermelho que já fora da mãe falecida, bem vistoso mas ainda não ajustado. Exibe-se com a peça diante do espelho. Ela se vê assim, que importa? Entretanto, quer dividir isso não somente com o Rogério, mas também com a plateia à qual traz de forma respeitosa e cruel o que realmente somos.
O Brasil é um dos países que mais mata travestis no mundo e pelo décimo quarto ano consecutivo! Parece que não é aqui, tão próximo, mas é.
O Cido existe!
O título interpelativo “Rogério, venha ver a travesti” traz um público numeroso aos teatros da cidade. O tema é inescapável, improrrogável e presente nas famílias. Numa busca rápida de Net é possível constatar tais crimes contra essas vulneráveis, de ódio e intolerância pelos golpes ou tiros no rosto e boca.
A Ciência convenceu a sociedade da existência de animais com os dois sexos, tais como as minhocas, sanguessugas, camarões, ostras, vieiras, cobras, lesmas, caracóis, corais, salmões e outros. E, pasmem, entre os cavalos-marinho, mesmo o macho pode engravidar. Os nossos primos macacos, em alguma porcentagem têm comportamentos homossexuais. Por que somente o humano não teria tais orientações?!
Depois de tantos melindres na família já se admite que fulano é um pouco diferente e fulana também, mas é mé-di-co, mé-di-ca, é in-te-li-gen-te, em-pre-sá-rio! Ou seja, para não se admitir a orientação sexual diversa dessas pessoas aceitam-nas pela função profissional. Permitem-lhes a fantasia de bons médicos, cientistas, gênios, empresários, mas lhes censuram o comportamental próprio dessas por parecer “estranhos e extravagantes” em vestir cores e sonhos ou no deslumbre dessas roupas não convencionais ao gênero sexual imposto.
O preconceito quer inibir a existência do que se afirmam ser apenas um fenômeno dentro de um quartel, numa universidade, num seminário ou no jardim da infância! Entretanto, é a existência de muitos e muitas pessoas assim, e bem mais comum que se admite. Não é por mera vontade delas, de gestos forçados. A expressão corporal, os meneios não são meros estereótipos ou deboche, mas um élan. O Cido não cabia em si por ganhar a peça da mãe, nem também o vestido lhe serviria sem ajuste. Por fim, a peça lhe caiu reluzente como a luva de Deus no corpo concebido.
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros