Papai em Pira

Alexandre Bragion

 

Papai Noel suava em bicas por debaixo da barba que, diziam seus inimigos, era postiça (sim, por aqui Papai Noel tem inimigos – talvez seja pelo colorido da roupa, vá saber). Descendo a Governador, Papai balançava um sino falso como ele – desses de lata enferrujada. Nas costas e sobre o peito, vestia um papelão de propaganda que anunciava qualquer coisa inútil e porcaria pensada para arrancar dinheiro do povo. Caminhando pelo centro, percebeu – porém – que as pessoas pouco o notavam. Pelo contrário. Algumas faziam até questão de desviar os olhos, com explícita desconfiança. “Tempos difíceis” – pensou Papai.

Na esquina da Governador com a XV, Papai teve de se esgueirar como um rato em meio à multidão que subia pela calçada e se movimentava para todos os lados. Desatento, foi girado pela vaga popular e rodou três vezes no próprio pé – só não caindo porque se segurou numa senhora, velhinha como ele. Na pressa, Papai se esqueceu de agradecer à boa mulher, que partiu praguejando gostoso alguns impropérios natalinos. Buzinas alegres tocavam Papai do meio da rua – e os motoristas, sempre educados e pacienciosos, colocavam seus braços para fora e cumprimentavam de punhos fechados ao Bom Velhinho que demorava a sair do trânsito. “Gente educada,” pensou Noel sem conseguir entender bem o que gritavam.

Depois, após quase ser atropelado por um carro que virou a esquina sem dar seta, Papai desceu pela XV até a Armando de Salles. Por sorte não chovia e Papai Noel pode andar por ali sem medo de se afogar nas enchentes que alegram e embelezam aquela região ano a ano. Pela avenida, ônibus alegres e festeiros adornavam a tarde do Terminal Central. Que gente fantástica, pensou Noel. Nada as abala! E que privilégio, o desse povo, poder viver numa cidade feliz e tão bem estruturada – e que prefigura em honestos rankings entre as melhores do Brasil.

Sem encontrar uma sombra de árvore para se abrigar do sol, Noel seguiu pela Armando de Salles. Rodas de suor debaixo dos braços revelavam a condição pouco saudável de Papai – apesar de que, diga-se de passagem, não portava ele a grande barriga que tanto o caracteriza em suas imagens pelo mundo. Na verdade, Papai Noel talvez estivesse magro demais para ser Papai Noel. A barba, agora colada de vez ao rosto suado, denunciava de fato que ele usava mesmo uma barba postiça – o que talvez pouco ou nada mudasse em sua vida, afinal a sua roupa (com alguma lantejoula escapando aqui ou ali) parecia uma fantasia de escola de samba adaptada à imagem da tradição natalina que os norte-americanos impuseram ao mundo por meio de uma garrafa de refrigerante.

Já perto da Rodoviária, Papai Noel se espantou com a quantidade de igrejas espalhadas nas proximidades. “Que terra santa!” – disse de si para si. “Uma cidade assim, de pessoas tão religiosas, deve mesmo ser uma cidade abençoada, sem armas, afetuosa e na qual prevalece o amor ao próximo e os direitos humanos” – começou a cogitar Papai. “Até mesmo os cinemas viraram igrejas, ora vejam!” – refletiu consigo sentindo-se verdadeiramente dispensável.

Então – certo de que o amor, o respeito, a união, a fraternidade, a justiça e a equidade imperam numa cidade onde abundam igrejas em cada esquina e onde os gestores só pensam no bem comum, na cultura, na preservação da natureza e dos próprios públicos históricos – Noel percebeu que não teria ele muito mais a fazer por aqui.

Enquanto esperava o ônibus na Rodoviária, ainda torcendo para não chover, Noel sentou-se à mesa num boteco. Depois, pediu uma gelada, tirou o cartaz do peito, puxou a barba postiça, ajeitou a velha capa vermelha cheia de lantejoulas, descalçou o tênis gasto e acendeu um cigarro – deixando-se ficar ali, como se ele também esperasse a vinda de algum Papai Noel. Ou talvez estivesse apenas esperando outros natais, diferentes do nosso. Um Natal que, de alguma forma, voltasse a fazer algum sentido.

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Alexandre Bragion é cronista deste matutino desde 2017.

 

 

 

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