Armando Alexandre dos Santos
Como explicamos em nosso último artigo, é simplificadora e distorce a realidade a suposição, disseminada pelos manuais didáticos usados em nossas escolas, de que no sistema de produção agrícola medieval somente havia senhores e servos. Ou seja, em termos simplificados, quem não era dono da terra era necessariamente servo e trabalhava só, ou quase só, para quem tinha o privilégio de ser senhor da terra.
A realidade é bem mais matizada. Na verdade, porque o direito medieval era, sobretudo, consuetudinário, havia uma grande variedade nos costumes e, consequentemente, era também muito grande a variedade de situações do camponês diante da terra.
Na França, concretamente, até princípios do século XIX (quando Napoleão impôs o Código Civil) em cada lugar vigorava um direito próprio, praticado e reconhecido pelos habitantes do local havia séculos; variavam as terminologias, variavam também as extensões dos direitos e deveres, mas de modo geral a margem de liberdade individual era muito maior do que ficou sendo depois. Régine Pernoud registrou a variedade terminológica que havia entre os camponeses que trabalhavam a terra francesa:
“Hóspedes, colonos, lites, servos são termos que designam condições pessoais diferentes. E a condição das terras apresenta uma variedade ainda maior: censo, renda, champart, fazenda, propriedade en bordelage, en marche, en queuaise, à complan, en collonge; conforme as épocas e as regiões, encontramos uma infinidade de acepções diferentes na posse da terra com um único ponto comum: é que, salvo o caso especial do alódio livre, há sempre vários proprietários, ou pelo menos vários, a ter direito sobre um mesmo domínio. Tudo depende do costume, e o costume adapta-se a todas as variedades de terrenos, de climas e de tradições – o que de resto é lógico, já que não se poderia exigir daqueles que vivem num solo pobre as obrigações que podem ser impostas, por exemplo, aos camponeses [das regiões ricas] da Beócia ou da Touraine”. (Luz sobre a Idade Média. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1997, p. 42)
A mesma variedade de situações podia ser encontrada em toda a Europa. No caso concreto de Portugal, verificava-se uma hierarquia ascendente de situações entre os camponeses medievais, desde aquele adstrito à gleba rural (o único ao qual se poderia, de modo mais adequado, aplicar a designação de servo de gleba) – até o enfiteuta ou foreiro, que para efeitos práticos era o verdadeiro dono da terra, a título vitalício e hereditário, embora não possuísse o respectivo título de propriedade e o respectivo senhorio. Havia também em Portugal, entre o adstrito e o enfiteuta, duas outras categorias: a dos colonos livres, que trabalhavam onde queriam e para quem queriam, conforme lhes aprouvesse, e a dos herdadores, que ainda não desfrutavam da mesma autonomia e da mesma segurança que os enfiteutas, mas já possuíam, em relação à terra em que trabalhavam, uma ligação muito mais estável e garantida que a dos simples servos; eram, de fato, verdadeiros proprietários do solo em que laboravam, mas podiam perder sua propriedade exatamente como um fazendeiro ou um sitiante moderno, se for infeliz nos negócios, pode se ver obrigado a vender sua propriedade, ou pode perdê-la para o Estado ou para um estabelecimento bancário ao qual deva dinheiro. Desse ponto de vista, a posição do enfiteuta era melhor e mais segura do que a do herdador.
Outra coisa, ainda, devemos considerar: é que também no relacionamento de senhores da terra com os trabalhadores manuais que nela trabalhavam de certa forma ocorria uma vinculação de tipo feudal, já que o sistema feudal perpassava toda a sociedade medieval, não se limitando, como geralmente se supõe, às relações entre nobres de vários níveis.
“O que se pode todavia saber com segurança, é que houve na Idade Média, para lá da nobreza, um conjunto de homens livres que prestavam aos seus senhores um juramento mais ou menos semelhante ao dos vassalos nobres e um conjunto não menos grande de indivíduos de condição um pouco imprecisa entre a liberdade e a servidão. (…) Um grande número de camponeses é livre; nomeadamente aqueles a quem se chamava plebeus ou vilãos, não tendo os termos, bem entendido, o sentido pejorativo que depois tomaram; o plebeu é o camponês, o trabalhador, pois rutura designa a ação de romper a terra com a relha da charrua; o vilão é de uma maneira geral aquele que habita um domínio, villa.” (PERNOUD, op. cit., p. 42-43);
Mas, no que consistia então, precisamente, a servidão de gleba na Europa Medieval? É o que veremos na próxima semana.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: O sistema feudal perpassava toda a sociedade medieval, não se limitando, como geralmente se supõe, às relações entre nobres de vários níveis.