Leituras críticas de espetáculos do Fentepira 2023

Alexandre Mate

Que noite! Que espetáculo! Que felicidade sentir-me vivo e poder assistir a um espetáculo tão potente, tão envolvente, tão transformador! Terceira noite da 18ª edição do Festival Nacional de Teatro – Fentepira, edição 2023, cujos espetáculos até aqui, por meio de proposições temáticas diferenciadas, caracterizam-se surpreendentes. Os três espetáculos apresentados no Fentepira até a noite de sexta-feira são criações de Piracicaba.

Em 01 de dezembro de 2023, na Sala Carlos Drummond de Andrade, inserida no Teatro Dr. Losso Neto, foi a vez de os/as integrantes do Grupo Andaime (Piracicaba), com mais de 35 anos de luta e de resistência e obras primorosas, fincar suas raízes por meio do surpreendente Seja como Flor – Por que Deixamos o Mundo nas Mãos dos Maus? O titulo, divide duas ideias/ teses, sendo a primeira delas extremamente poética e a segunda indagativa em perspectiva acentuadamente alegórica e didática.

Assim como o título, a obra de estrutura rigorosamente épica transita, quase todo o tempo, com um rebatimento entre manifestações livres, poéticas, espontâneas e afetivas contrastada a diferentes modos de repressão. Nesse procedimento de embate, a repressão é manifestada como decorrência dos dois anteriores períodos políticos do Brasil (o golpe de 2016 e o desgoverno da sequência até 2022), com seus ódios; fanatismos extremados e violentos; procedimentos de barbáries em todos os níveis; tentativas de demolição do respeito ao diferente, à democracia, às ciências… período de obscurantismos e práticas genocidas.

A obra-manifesto, dirigida pelo veterano Luiz Carlos Laranjeiras caracteriza-se, formalmente, em uma explosão criativa emocionante. Trata-se de uma manifestação arquetípica, plasmada e urdida a partir das proposições essenciais das práxis do teatro de grupo. Em Seja com Flor… fica evidente o trabalho coletivo, criado pela junção de inventividades em colaboração. Desse modo, e em razão de ser traço, também, do teatro épico, o resultado compreende o tecimento composicional que mescla vários estilos: de gênero, de tratamento estético-cênico, de espacialidade… Em tese, a base da obra-manifesto liga-se às manifestações e formas populares representacionais de cultura e ao teatro épico.

Ainda na fila de espera, somos surpreendidos por um coletivo harmonioso que, quase na condição de um cortejo, anuncia, sobretudo por meio de música, as “palavras de ordem” da obra que está a nascer. Em determinado momento, alguém do maravilhoso coro de artistas da cena solicita que respiremos fundo e que deixemos a poesia entrar. Penso que pelo entusiasmo do coro excepcional, formado por Bruno Agulhari, Diego Mendes, Felipe Vecchini, Jennifer Garcia, Luiza Vaz, Tiago de Luca e Wellington Camargo, não são poucos/ poucas a se deixar levar. Ser recebido com boa música quase sempre abriga um procedimento de acolhimento próximo do mântrico. Dentre outras referências, quanto à alusão mântrica, penso que uma passagem da música Serra do Luar, de Walter Franco, segundo a qual “Tudo é uma questão de manter, a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”, pode expressar parte do operador trazido pelo espetáculo. Tranquilo, sim, mas em estado de transbordamento: a música, magistralmente apresentada ao vivo, com condução impecável de Felipe Vecchini se caracteriza em outro ponto de explosão de beleza.

No espaço representacional, acompanha-se uma dramaturgia de texto nascida a partir da criação de sete poemas escritos por Laranjeiras que, no processo colaborativo, foram entremeados às improvisações do coletivo e cujo tratamento final é de Bruno Agulhari. Divididas pelo anúncio de novos poemas, os episódios com algumas cenas (muitas das quais de beleza poética entusiasmante) apresentam atrizes e atores com um brilho intenso nos olhos. Pode-se perceber na obra, a mesclar o sonho e os pesadelos da existência (manifestada por um período político infernal, tirânico e fascista) os tantos significados e as disputas ali presentes. Dizer aquelas palavras, viver aquelas cenas têm um caráter de urgência.

O macacão básico, outro procedimento épico, que caracteriza o figurino transforma-se, durante o espetáculo, por meio da junção de pequenos e simbólicos adereços. Sob o macacão cada integrante do conjunto criador usa uma camiseta de cor diferente. Aqueles corpos atuam em uma proposição cenográfica com apenas duas pequenas estruturas Rohr e uma densa cenografização decorrente de fitas (amarela e preto) de interdição: o efeito é muito expressivo. A despeito das censuras e da violência o canto daquela gente se faz… se faz e nos move.

Seja com Flor… apresenta cenas lindas e comoventes: os procurados a se transformar em porcos (seus perseguidores); aquela em que se rebate a opressão da vida cotidiana e fragmento do antológico O Grande Ditador, de Charles Chaplin; a alusão explícita da destruição das árvores e à matança da gente que as defende… uma “esteira” de fogo (representada por um tecido vermelho) remete às traduzibilidades das colchas de violências que caracterizam o mundo. Mesmo forçando um pouco a barra, pode-se afirmar que, do título ao tratamento composicional, mesmo com extensão maior, Seja como Flor – Por que Deixamos o Mundo nas Mãos dos Maus? caracteriza-se em obra atenta e tratada pelos expedientes do agit-propismo, que está a ressurgir depois de um período tão doloroso da vida social.

O processo de montagem da obra, iniciado em 2021, manifesta a necessidade de se tomar cabalmente um partido, de explicitar de que lado se está nas relações da vida. Nesse particular, o belíssimo espetáculo traz à lembrança um texto do filósofo alemão Walter Benjamin (Teses Sobre o Conceito de História), que, em uma de suas passagens, afirma:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. […] O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

É disso que se trata! De uma beleza cujas raízes abrigam tanta gente e tradição que veio antes de nós (e que está aí a lutar): resistindo. Cumprimento de modo transbordante de alegria ao conjunto criador da obra e aos estados de felicidade que proporcionaram e proporcionarão. Repetindo outro maravilhoso poeta (mudando um pouco o original): Eles passaram, vocês (Andaime) passarinhos!

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Alexandre Mate, professor

 

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