Ao deus desconhecido

Camilo Irineu Quartarollo

 

As Reduções jesuíticas, edificações em ruínas, surgem da ação colonizadora da Igreja nos séculos passados. Esse era o tipo de missão, reduzir o catecúmeno à nova fé. Um processo expropriatório contra os espíritos livres da mata, tornando-os sedentários à força de armas e da ideologia religiosa.

O padre da minha paróquia tinha um caderninho que anotava todos os batismos e casamentos que fizera com o júbilo de sua musculatura sacerdotal, orgulho da mãe dele.

No filme A missão, os guaranis são conquistados pela música. Aliás, quem não se renderia à mística de Ennio Morricone! O genocídio da aldeia do padre Gabriel se encerra com a morte dramática deste, recusando-se a empunhar a espada. Entretanto, os povos originários têm força própria e os curumins sobreviventes retornam da mata a juntar somente o violino, a música, o que lhes ficou na alma e vão pelas águas – como a mergulhar na perenidade cultural e a emergir ao advento.

Aos antigos reduzidos e aos atuais alienados foram concedidas réplicas do deus barbudo, de cálices ou de um são-benedito confinado à cozinha, no qual escancara que o tal santo foi bonzinho “no seu quadrado”. Alguns de nós ainda está em busca de um elo perdido e se assusta com a novidade, as faces divinas.

São Paulo legou sua doutrina através das cartas às comunidades primitivas, as Cartas ou Epístolas paulinas. Jerusalém estava inabitável, o templo em vias de destruição, mas reconheceu o apóstolo que o deus desconhecido não habita em templos feitos por mãos humanas – nem no de Jerusalém, estava num altar público de Atenas, ao ar livre. A história remonta a uma epidemia na qual os deuses locais não curavam, o deus que “curou” foi o desconhecido de um altar sem estátua e com uma inscrição vaga. Cura ou a imunidade de rebanho à custa de muitas mortes.

A Igreja católica é questionada por suas missões tradicionais de cruzes, batizados, missas e confissões em fila. Contudo, já se fala de evangelizar a Cultura, não de impor ou “levar” a fé, nem se usa mais a antiga palavra redução (colonizar). Com o Concílio Vaticano II, a Igreja começou a aceitar elementos culturais na celebração das missas, cantos populares e outras práticas, dando cunho afro, caipira e outros às celebrações.

A Teologia da Libertação se abriu aos valores existenciais e próprios das comunidades em detrimento da devoção ficcional dos retábulos medievais. Por certo a salvação não será pela vaga presença dos padres, mas pelos leigos comprometidos com sua comunidade. A Igreja católica na pessoa de Francisco se volta à multiplicidade da condição humana e abre-se às manifestações inclusivas de pessoas com orientações sexuais diversas e culturas distintas, na novidade da ação divina.

Será que os sobreviventes encontrarão a fluidez do batismo dos guaranis ou serão reduzidos? Por certo, o deus desconhecido está no clamor de Gaza, não em Israel.

______

Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima