Patrimônio – Matadouro Municipal: a obra magna de 1913 que higienizou a cidade

– Fachada do Matadouro Municipal em 1998, antes da reforma do prédio em 2003. CRÉDITO: Fabrice Desmonts
CRÉDITO: Acervo Histórico/Câmara
Parte interna do prédio do Matadouro em 1998 CRÉDITO: Acervo Histórico/Câmara
Prédio do Matadouro Municipal nos dias atuais: sede da Semuhget e Semozel; CRÉDITO: CCS/Prefeitura

 

Há 110 anos, Piracicaba retirava da região central “o lugar da matança de reses que fazia exalar um fédito insuportável”

 

A virada dos séculos 19 e 20 é um período marcado por transformações urbanas em Piracicaba, sobretudo pelas urgentes necessidades sanitárias. Foi essa a força propulsora que levou, em 1888, à inauguração do Mercado Municipal no imóvel onde funciona até os dias atuais. O espaço de venda de produtos alimentícios já foi destaque de uma coleção especial do Setor de Gestão de Documentação e Arquivos da Câmara de Piracicaba.

Décadas mais tarde, foi a vez de resolver a necessidade de retirar da região central “o lugar da matança de reses que fazia exalar um fédito insuportável”. As atas da Câmara registram o vai-e-vem das discussões que levaram à construção do Matadouro Municipal na região do Algodoal, às margens do Córrego Guamium, e que são destaques de mais uma coleção especial que pode ser acessada no Acervo Histórico do Legislativo.

A instalação do Matadouro, no entanto, levou décadas – ou até quase um século! – para que fosse decidida (e construída). Para se ter uma ideia, o abate de animais em vias públicas era algo muito comum nas décadas de 1820, quando a então Freguesia se tornou Vila e passou a ter uma câmara.

Em 15 de março de 1823, a ata camarária registra a discussão e o arremate do contrato do “talho e da carne verde em praça”, feito por Constantino Manoel pelo valor de oito mil réis ao ano. Foi a primeira manifestação oficial da Câmara do assunto referente ao local de armazenamento e comércio de carnes, no caso o “talho” (o equivalente ao que se conhece como “açougue”).

“Com o passar do tempo, o crescimento da cidade, junto com o aumento da população, fez com que a matança de animais acabasse se concentrando num local específico na área central, que ficou conhecido como ‘lugar da forca’”, diz Bruno Didoné de Oliveira, servidor do Setor de Gestão de Documentação e Arquivo e responsável pela pesquisa sobre o Matadouro.

A citação ao ‘lugar da forca’ aparece na sessão de 11 de janeiro de 1849, o que denota que possivelmente o espaço já abrigasse atividades referentes ao abate de animais. “Este lugar foi então convertido a matadouro e ficava entre as atuais ruas Moraes Barros e XV de Novembro, com margem para o Córrego Itapeva, que é a atual avenida Armando de Salles Oliveira”, detalha.

É bem possível que, no início das matanças de animais, esse lugar não fosse tão próximo do principal núcleo habitacional da Vila da Constituição. Mas com o passar do tempo, a região que atualmente é reconhecida como o Centro de Piracicaba passou ser habitada. Não é à toa, portanto, que o temor quanto à salubridade pública e a preocupação quanto à “urgente necessidade” de haver um matadouro público aparecem nos anos seguintes em atas da Câmara.

As sessões de 25 e 26 de outubro de 1852 registram os primeiros pedidos formalizados quanto à construção do matadouro, mas pelos oito anos seguintes, o assunto ficou esquecido nos debates de plenário.

Somente em 19 de agosto de 1860 é que voltou a ser aventada a possibilidade de um novo local. O que motivou a discussão foi voltar à tona na Câmara foi a queda do rancho do matadouro. “Foi necessário que a edificação desabasse para que algo de concreto acontecesse quanto à construção de um novo espaço”, observa o servidor municipal Bruno Oliveira.

Em menos de dois meses – em 10 e 11 de outubro de 1860 –, é são aprovados a mudança e o orçamento para a construção. No ano seguinte, durante a sessão de 21 de julho, o presidente da Câmara, ao abrir a reunião, declarou que o motivo do encontro era para o recebimento do novo matadouro público, então localizado no início da Rua do Rosário, ainda às margens do Itapeva.

Ali, o espaço funcionaria até novembro de 1913.

Fédito insuportável’ – A solução de mudar das ruas Moraes Barros e XV para a Rua do Rosário se mostrou insuficiente pouco tempo depois. Em 6 de abril de 1867 – menos de seis anos desde a inauguração –, já apareciam, em ata da Câmara, considerações sobre o matadouro: “Afeta a salubridade pública, a conservação no lugar existente, onde a falta absoluta de água para lavar o lugar da matança de reses faz exalar um fédito insuportável”.

A insatisfação quanto às condições de higiene e salubridade, tanto relativas aos aspectos específicos da matança e o que gerava de rejeitos, quanto à precariedade das instalações e proximidade das habitações, fez com que a Câmara abordasse a mudança de local em diversas ocasiões.

Após a primeira manifestação, em 1867, indicando que era preciso construir um matadouro em outro lugar, em mais 20 ocasiões essa necessidade foi levantada na Câmara num intervalo de 36 anos, entre 1873 e 1909. Em nenhuma delas, porém, a intenção chegou a sair do papel.

Neste período, duas manifestações chamam a atenção: as que constam nas sessões de 7 de janeiro e de 1º de outubro, ambas em 1887.

Em 7 de janeiro, a ata da sessão registra: “Entre as necessidades mais palpitantes e urgentes da cidade figura (…) a remoção do matadouro para local mais apropriado (…). O edifício atual, ridículo e infecto, é ainda estreito para conter o gado ali depositado para a matança. O crescimento da cidade para suas imediações incompatibiliza a permanência nesse foco de infecção que a saúde e as [horas de adiantamento] reclamam a supressão.

Em seu arquivo possui a Câmara um plano do matadouro que parece aperfeiçoado, fornecido generosamente pelo distinto engenheiro Miguel Assmussen”.

Constata-se, portanto, a urgência da mudança para um edifício mais bem estruturado, a situação precária do prédio de então, a proximidade dos habitantes ao local e os riscos sanitários que isso significava; e, por último, a existência, nos arquivos da Câmara, de um plano para um novo matadouro, oferecido pelo engenheiro Miguel Assmussen – que já havia sido responsável pela elaboração do que viria a ser, naquela época, o Mercado Municipal.

“A Câmara tinha, então, arquivado, um plano de autoria de um profissional comprovadamente competente, mas que não foi posto em prática”, avalia Oliveira. “O plano no arquivo estava, no arquivo continuou”, destaca.

A outra manifestação que chama a atenção é de 1º de outubro de 1887. Naquela sessão, os vereadores discutiam a possibilidade de se fazer o emplacamento de casas e ruas, quando o vereador Prudente de Moraes emitiu opinião em sentido contrário: “é um melhoramento de ordem secundária e que não deve ser preferido a outras de muito mais utilidade e urgência, como a construção de um novo matadouro, que, entretanto, tem sido adiada pela Câmara por falta de recursos”, diz o então futuro Presidente da República, ao classificar o emplacamento como “obra mais de luxo e sem grande utilidade”.

Morto em 3 de dezembro de 1902, Prudente não chegou a ver o Matadouro Municipal, que só seria inaugurado onze anos mais tarde, em 1913.

Higiene rigorosa – O projeto que finalmente gerou a construção do matadouro foi apresentado em 4 de julho de 1910. Naquela sessão, a comissão formada para tratar do assunto (composta pelos vereadores Torquato da Silva Leitão, Aquilino José Pacheco e Fernando Febeliano da Costa), relatou que conseguiu do engenheiro Octávio Teixeira Mendes uma planta para construção que “satisfazia por completo as necessidades de então”.

Ao analisar a planta, a comissão da Câmara avaliou: “O abatimento do animal a sacrificar é feito de modo racional e todas as operações consecutivas por que passa o mesmo até ser entregue ao consumo são cuidadosa e inteligentemente delineadas, notando-se (…) que a mais rigorosa higiene é mantida. Não descuidou também o autor da planta de atender ao desenvolvimento crescente de nossa cidade, dando ao edifício disposições tais que ligeiras modificações internas o tornam utilizável ainda por dilatados anos”.

Em relação à localização, a comissão relatou que, de acordo com os estudos da Câmara, o local preferido era uma faixa de terreno na Fazenda Algodoal, de propriedade de João Baptista da Rocha Conceição, junto ao Guamium.

No mesmo dia, foi apresentado um projeto de lei autorizando a construção do matadouro e, na mesma sessão de 4 de julho, a proposta foi aprovada em primeira discussão. A votação em segundo (e último) turno ocorreu uma semana depois, em 11 de julho de 1910. Pelos meses seguintes, ocorreram as negociações com o proprietário do terreno onde ser construído o matadouro.

Público x privado – Na sessão de 8 de novembro de 1910, o prefeito Fernando Febeliano da Costa relatou, perante os vereadores, os detalhes das negociações que, pelo que registra a ata, não foram fáceis. “Dos passos que dei junto ao proprietário dos terrenos considerados os mais apropriados para aquele serviço e indicar-vos afinal o que julgo conveniente no caso”.

Febeliano da Costa relatou que oficiou João Conceição sobre o que havia sido deliberado pela Câmara quanto à escolha do terreno. Inicialmente, o prefeito havia destacado “a esperança de poder em breve prazo realizar a compra”.

Dias depois, prefeito e proprietário fizeram “visita minuciosa” ao terreno, na ocasião em que o primeiro indicou ao segundo qual a parte de terra necessária para a construção do matadouro e pediu para que fosse colocado preço na área pretendida, alegando que havia urgência em “ultimar aquele negócio”.

Mas João Conceição não quis fazer o preço “de pronto”. Posteriormente, enviou uma carta ao prefeito, informando que decidiu pelo valor de dez contos e propôs ainda uma permuta por alguns terrenos que eram da municipalidade. Ocorre que esses terrenos tinham valor superior a quinze contos de réis.

“Em resumo, ele queria trocar o terreno dele, que valia dez, pelos da Prefeitura, que valiam mais de quinze”, observa Didoné de Oliveira.

Diante dessa situação, Febeliano da Costa afirmou que a estimativa de João Conceição era “desarrazoada” e que na cidade não existiam terras rústicas, superiores, cobertas de mata virgem e na melhor localização possível “que valham sequer uma quinta parte do valor que ele estipulou”, argumentou.

O prefeito alegou que não poderia – “de forma alguma”, pontuou – realizar a compra do terreno pelo preço estipulado e que, caso o fizesse, “não estaria tendo o zelo necessário com o dinheiro público”, advertiu.

Diante do impasse e levando em conta a urgência em construir o matadouro, a prefeitura já estava com tudo pronto para as obras. E ainda, considerando que a construção não poderia ficar à mercê de interesse particular, Febeliano da Costa propõe a decretação de utilidade pública e desapropriação do terreno.

Na mesma sessão de 8 de novembro de 1910, é aprovada a desapropriação e em 5 de dezembro de 1910, é aprovada em segunda e última discussão.

Um ano e quatro meses depois – em 1º de abril de 1912 –, o prefeito informa que no processo de desapropriação, João Conceição procurou “entrar em acordo com a municipalidade, para pôr um termo a questão” e ofereceu uma “proposta vantajosa”, a qual foi aceita pelo prefeito.

Mãos à obra – Resolvida a desapropriação, pelo restante do ano de 1912 e por boa parte de 1913 correram as obras. Na sessão de 4 de novembro de 1913, o prefeito Fernando Febeliano da Costa afirma que as obras foram concluídas e que era necessária a criação do cargo de administrador do matadouro. Na mesma sessão, ele propõe a criação do cargo e a proposta é aprovada em primeira discussão. Já no dia seguinte, 5 de novembro de 1913, a criação do cargo de administrador é aprovada em segunda discussão.

Semanas depois, o Matadouro é inaugurado, em 29 de novembro de 1913.

Após a virada do ano, na primeira sessão de 1914, realizada em 15 de janeiro, o prefeito Fernando Febeliano da Costa apresenta o relatório referente a 1913, onde aponta que a construção do matadouro “foi a obra magna” do ano que se findou. Registra também a participação de Paulo de Moraes Barros, então Secretário da Agricultura, na inauguração solene do novo próprio municipal.

Orgulhoso da obra, o prefeito afirma ainda que “não será vaidade nem presunção supormos que o matadouro novo se torne modelo para os municípios que entenderem erigir em seus territórios um estabelecimento daquele gênero”. O Matadouro funcionou até 10 de maio de 1973.

De 1975 a 1985, o prédio funcionou como entreposto de abastecimento de gêneros alimentícios. Após esse período, ficou em total abandono e serviu como depósito para diversas secretarias municipais. Entre os anos de 2003 e 2004, com o intuito de abrigar a Emdhap (Empresa Municipal de Desenvolvimento Habitacional de Piracicaba), o prédio foi recuperado, mantendo as características originais de sua construção.

Atualmente, o prédio é ocupado pela Semuhget (Secretaria Municipal de Habitação e Gestão Territorial) e Semozel (Secretaria Municipal de Obras e Zeladoria).

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