Armando Alexandre dos Santos
Na Alta Idade Média – ou seja, na fase inicial do Medievo – o reino dos Francos, convertido ao catolicismo após o batismo do rei Clóvis, em 496, assumiu especial importância e se tornou um braço político e militar ao serviço da Igreja Católica e dos Papas.
A primeira dinastia que governou o reino dos Francos foi a dos Merovíngios, descendentes de Clóvis, que reinaram na França até meados do século VIII. Com a decadência destes, em meados do século VIII assumiu o trono uma nova dinastia, a dos Carolíngios. O terceiro rei dessa dinastia, Carlos Magno (742-814), foi um dos maiores monarcas de toda a História. No ano 800, o Papa São Leão III sagrou-o como Imperador, restaurando dessa forma o Império Romano do Ocidente, mais tarde denominado Sacro Império.
Carlos Magno ampliou consideravelmente os domínios herdados de sua estirpe e protegeu a Europa, com sucesso, contra novas agressões provenientes de povos do Leste, como também dos muçulmanos que no século anterior haviam invadido e dominado a Península Ibérica. Foi admirável como administrador, unificou e garantiu coesão a seu povo. Desenvolveu uma política sistemática de incremento da cultura, de tal modo que seu governo marcou uma renovação cultural de grande intensidade. É por isso que numerosos historiadores, entre os quais o bem conhecido Jacques Le Goff, se referem a seu período de governo como o do Renascimento Carolíngio.
O principal elemento estruturador da organização política e social do período que se seguiu ao governo de Carlos Magno foi o estabelecimento do feudalismo, sistema que se apoiava numa concepção sacralizada da monarquia e, mais do que isso, de toda a sociedade humana.
A sociedade medieval era compreendida organicamente, ou seja, era concebida como sendo um organismo vivo, à maneira de um corpo composto por órgãos diferenciados, com funções também diferenciadas, dispostos ordenadamente para o bem do conjunto vital. Três eram os braços ou estados que compunham o corpo social: o Clero, a Nobreza e o Povo. Em latim, esses três grandes grupos sociais eram designados como oratores (os que oravam), bellatores (os que guerreavam e governavam) e laboratores (os que trabalhavam). Esse sistema orgânico e tripartido da sociedade humana não foi criação inteiramente original do Medievo cristão; na verdade, já Platão, na República, idealizara uma sociedade composta de três partes distintas, concorrendo as três para o bem-estar de um corpo social organicamente concebido.
O feudalismo não foi apenas um modo de produção econômica, como afirmou Marx e ainda hoje pcitacisticamente muitos repetem. Muito mais do que isso, o feudalismo foi todo um sistema jurídico-institucional, todo um modo de ser e de organizar a sociedade, o qual se baseava num relacionamento de pessoas que, embora em níveis diferentes e com funções diferenciadas, tinham interesses comuns e atuavam num sistema integrado de troca de benefícios recíprocos. O superior oferecia proteção e garantia a defesa do inferior contra seus inimigos, e também o auxiliava em caso de necessidade; em troca, o inferior prestava ao superior sua homenagem e lhe jurava fidelidade, rendendo-lhe honras e alguns serviços.
O sistema feudal era bem estruturado e, ao mesmo tempo, era descentralizado, com o exercício da autoridade disseminado por todo o corpo social. O rei era a chave de cúpula do corpo social, mas não exercia uma autoridade centralizadora, no modelo que mais tarde se realizaria no sistema das monarquias absolutistas. O rei medieval exercia autoridade verdadeira e efetiva, mas não tirânica, porque era limitada e equilibrada por contrapesos e compensações. Até mesmo o simples povo, constituído por plebeus, exercia em muitos locais certo grau de autoridade; a autonomia popular, exercida conforme o caso de modos muito diversos, constituía um privilégio efetivo habitualmente respeitado pelos reis. As municipalidades e outros organismos intermediários da sociedade (associações ou corporações muito variadas, religiosas ou civis) gozavam de imensa autonomia, muito maior do que podemos imaginar nós, que vivemos habituados a uma excessiva ingerência dos governos na vida dos particulares.
O sistema feudal era, também, muito equilibrado na distribuição das funções e atribuições entre pessoas de níveis diferentes. A nobreza de certa forma representava uma extensão do poder real, já que cada senhor feudal era, no seu feudo, autônomo, à maneira quase de um pequeno rei; mas os reis, curiosamente, exerciam uma função de contrapeso a favor do povo simples, protegendo-o contra possíveis abusos da nobreza. Os reis sempre foram, em toda a Europa medieval, vistos como protetores naturais do seu povo, sempre foram considerados como suprema instância à qual se podia apelar com segurança em face de algum abuso ou injustiça cometido por autoridades locais.
Esse sistema de equilíbrio geral só podia ser exequível em uma sociedade que fosse sacralizada, ou seja, com as relações humanas profundamente impregnadas pelo sagrado. Numa sociedade assim constituída, a justiça e a caridade se temperavam e completavam, tornando possível um ordenamento jurídico-institucional equilibrado e estável. Conflitos havia, evidentemente, já que eles são indissociáveis da natureza humana; mas eles eram menos agressivos e podiam ser resolvidos de modo menos traumático do que numa sociedade não sacralizada, como a que temos nos tempos atuais. Na realidade, o sistema feudal, praticado de acordo com as circunstâncias e as peculiaridades do seu tempo, correspondia satisfatoriamente às necessidades e anseios dos povos, que o aceitavam sem revoltas, como sendo algo natural e desejável. É sempre oportuno lembrar que o passado histórico deve ser compreendido em seu contexto – muito mais do que ser julgado por nós, com os conhecimentos e pressupostos que temos e com a criteriologia prevalente em nossos dias.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: O passado histórico, muito mais do que ser julgado por nós, deve ser compreendido em seu contexto.