Museu da Cana, ainda que tardio

José Machado

 

Ao final do meu mandato à frente da Prefeitura, em 2004, deixei um Plano Diretor para ocupação do Engenho Central, que jamais foi considerado e levado adiante. Nele estava cogitada, entre outras, a implantação de um Museu de Ciência e Tecnologia.

Os anos se sucederam e dois fatos marcantes devem ser aqui registrados, em relação à ocupação do Engenho. O primeiro foi a implantação do Teatro Erotides de Campos, reconhecidamente uma bela e louvável iniciativa, compatível com a vocação do Engenho. O outro foi o envolvimento do Grupo Raízen que assumiu a responsabilidade de apresentar um projeto para a instalação do Museu da Cana, iniciativa que permanece inconclusa e não se sabe em que estágio de elaboração se encontra.

Alguns anos atrás, tive a oportunidade de conhecer o projeto preliminar do Museu da Cana, que foi apresentado pelo responsável por ele no Grupo Raízen. Fiquei bem impressionado com a apresentação do projeto em si, muito embora ele ainda não contemplasse então o conceito museológico, à época em vias de ser contratado pela Raízen, lacuna que me impediu de tirar uma conclusão definitiva.

Uma das minhas expectativas é a de que o Museu venha a contemplar todas as dimensões da história da agroindústria canavieira no Brasil, desde a Colônia até o presente, sem escamotear as relações de trabalho perversas (escravidão; bóia fria) que tanto marcaram essa atividade produtiva, sob pena de empobrecer o projeto. Uma outra dimensão essencial refere-se ao progresso técnico no processo de produção, desde o canavial até a indústria propriamente dita, permitindo o desvendamento dos fundamentos científicos e tecnológicos presentes, de modo a aproximar o Museu da Cana de um genuíno Museu de Ciência e Tecnologia. Afora as questões de conteúdo, é fundamental, por outro lado, que o projeto museológico incorpore a modernidade digital na sua interação dinâmica com os visitantes, sobretudo com as crianças em idade escolar, rejeitando as soluções estáticas, em geral tediosas.

O arranjo financeiro apresentado revelou o desafio de se atrair o apoio privado, através da adesão por quotas. Considerando que o projeto será implantado nos prédios gêmeos do Engenho, aliás, os mais vistosos e bonitos, prevendo-se custos elevados, não apenas relativamente ao restauro dos mesmos, mas também os relativos aos equipamentos pertinentes e outras intervenções, não será trivial levantar os fundos necessários. O aporte de recursos públicos, nesse contexto, me parece inevitável.

O modelo de gestão, se bem me lembro, não estava maduro, mas se cogitava propor a criação da Fundação Engenho Central, que administraria não apenas o Museu da Cana, mas todo o complexo do Engenho. Levantei dúvidas a respeito, sobretudo quanto ao papel e a responsabilidade do poder público vis-à-vis à responsabilidade privada.

Entendo perfeitamente a pertinência de uma gestão competente, sustentável e livre, ao máximo, das injunções e oscilações conjunturais. O modelo Fundação pode ser interessante nesse contexto e, em princípio, não vejo problema que seja adotado, contudo, ele deve ser regido por um estatuto que compreenda uma clara responsabilidade do Poder Público e uma forte representação da sociedade civil nas instâncias deliberativas. Seria desastroso franquear liberdade plena aos gestores para intervir naquele majestoso espaço público, uma vez que ele é tombado em razão do seu valor histórico e cultural e, ademais, em hipótese alguma, poderá cercear o desfrute pleno do conjunto da população piracicabana, independentemente da sua condição social. Faço essas advertências porque, gato escaldado, não custa prevenir, sobretudo quando a sanha especulativa mostra suas garras no caso do tenebroso projeto Boulevard Boyes.

O Engenho Central tornou-se um dos maiores fenômenos culturais da cidade de Piracicaba, senão o maior. Sua foto está estampada em paredes, lojas, camisetas e peças artesanais de ornamento. Inúmeros artistas plásticos, profissionais e amadores, reproduziram e seguem reproduzindo com seus pincéis e talentos telas estampando o cenário fantástico proporcionado pelo Engenho. Ali ocorrem eventos científicos e tecnológicos, manifestações culturais como o famoso Salão de Humor de Piracicaba e festas populares como a Festa das Nações. Encantamento puro.  Em 1990, se não me engano, Burle Marx, vindo a Piracicaba a convite da ESALQ, visitou o Engenho Central e, instado por mim, respondeu lacônica e significativamente: “É único!”.

O Engenho há muito está sem novidades, os seus edifícios estão a reclamar restauração e a manutenção e a vigilância do conjunto deixam a desejar. O Museu da Cana, se provido da modernidade museológica necessária e se implantado cabalmente, seria um fator impulsionador formidável, daí porque faço aqui uma cobrança pública para que a Administração Municipal preste contas à população sobre o estágio em que se encontra o projeto junto à Raízen e envide esforços para torna-lo viável no curto e no médio prazo.

_____

José Machado (PT), ex-prefeito por dois mandatos, ex-deputado federal

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima