Possível aproveitamento de um rico sermonário

Armando Alexandre dos Santos

 

Encerrando hoje esta série de artigos sobre a Coleção Lamego, retornamos ao ponto inicial: a possibilidade concreta que se abre de um estudo aprofundado do sermonário disponível na biblioteca de Lamego, com “mais de 400 sermões pregados, nos séculos XVII e XVIII, na Bahia e também em Portugal, alguns deles de raridade tal que nem sequer se encontravam catalogados nas melhores obras de Bibliografia brasileira”. Um estudo pormenorizado dessa coleção de sermões poderia se revestir de grande interesse, a vários títulos, entre os quais:

  • Considerar como o clero luso-brasileiro se comportou durante o prolongado período de 1640 até 1667, quando, afinal, a Santa Sé reconheceu a soberania da Casa de Bragança. Terá havido, nesse período, sinais de alguma espécie de resistência, por parte de setores do clero favoráveis à Casa de Habsburgo, ou pelo menos de descontentamento com a situação conflituosa e até certo ponto cismática, de Lisboa em relação a Roma?
  • Procurar, nesses sermões, sinais precursores dos grandes embates ideológicos e políticos que, no século XIX se manifestaram com toda a clareza, entre a Igreja Católica, de um lado, e o que se convencionou chamar de “modernidade”, de outro.
  • Procurar sinais de reflexos, no mundo luso-brasileiro, das grandes polêmicas travadas na França e na Itália no campo da Teologia e da Espiritualidade, por exemplo, a respeito do jansenismo, em suas diversas modalidades e manifestações. Especificamente procurar, no campo da Teologia Moral, sinais dos debates que opuseram, de um lado, rigoristas e jansenistas, e de outro os partidários da teologia moral probabilista (jesuítas) e equiprobabilista (redentoristas ligorianos). Também sobre polêmicas (ainda vivas no século XVIII e XVII) acerca da Imaculada Conceição de Maria, sobre a infalibilidade pontifícia e a Assunção de Maria – que haveriam de ser proclamadas como dogmas nos dois últimos séculos. Por exemplo, no que diz respeito à Imaculada Conceição, ainda no final do século XVI o dominicano D. Frei Bartolomeu dos Mártires, Arcebispo de Braga, continuava fiel ao ensinamento anti-imaculista de São Tomás e São Boaventura, e distinguia claramente, na sua arquidiocese, que se estava celebrando liturgicamente a “Conceição de Maria”, e não a “Imaculada Conceição de Maria” – para realçar que aceitava que a Virgem havia sido purificada do pecado original no primeiro instante depois de concebida, não porém na sua conceição. Em 1646, D. João IV enfrentou dificuldades, por parte de lentes dominicanos,  quando propôs o juramento imaculista para a obtenção de graus acadêmicos  na Universidade de Coimbra. Tais resistências, até quando se prolongaram, a julgar pelo registrado nos sermões?
  • Procurar sinais, nos sermões, das polêmicas havidas, no século XVIII, sobre a Companhia de Jesus, as quais culminaram na sua expulsão dos domínios da Coroa lusa e, logo depois, na extinção da própria Companhia, pelo Papa Clemente XIV.
  • Ver como o clero luso-brasileiro reagiu diante de enfrentamentos episódicos ocorridos, já durante o longo reinado de D. João V, com o Vaticano, enfrentamentos esses que se tornaram permanentes durante o reinado de D. José I.
  • Procurar sinais de influência de outros debates ocorridos na época, como por exemplo acerca da liberdade dos índios, do direito de escravizar prisioneiros de guerra e negros africanos etc.
  • Ver como repercutiram, se é que repercutiram, nos sermões, certas manifestações do velho espírito cruzado e da vocação missionária assumida por Portugal, por exemplo, no episódio da esquadra enviada por D. João V a combater os turcos, vitoriosa na batalha de Matapão, não longe de onde, 170 anos antes, ocorrera a batalha de Lepanto. Essa curiosa revivescência extemporânea do espírito medieval e cruzadístico em pleno século XVIII, que marcas terá deixado nos sermões?
  • Procurar ver em que medida repercutiam no mundo luso-brasileiro os grandes embates ocorridos na França, entre o galicanismo regalista e a ala do clero fiel a Roma. Terá havido em Portugal, por exemplo, alguma tentativa de justificação teológica do absolutismo como a de Bossuet?
  • As doutrinas do Pe. Francisco Suárez e São Roberto Belarmino, contrárias à tese do “direito divino dos reis”, defendida por Jaime I da Inglaterra, deram base doutrinária e moral à vitoriosa revolução bragantina de 1640 e recobrariam forças com o liberalismo do século XIX. Elas continuaram a ser pregadas livremente nos domínios da Coroa lusa, na fase de afirmação do absolutismo? Ou foram tidas como “politicamente incorretas”, de acordo com os critérios da época?
  • João Camillo de Oliveira Tôrres aponta para o fato de o pombalismo ter determinado uma forte mudança de rumo na antiga instituição do Padroado luso. Até D. João V, o Padroado, embora sempre mantendo latente uma disputa de poder entre Lisboa e o Vaticano, era de um modo geral colaborativo. Prevalecia, em linhas gerais, boa vontade de ambos os lados. Mas, a partir de Pombal, o Padroado na prática se definiu como um sistemático combate a Roma, por parte de Lisboa. Durante todo o Império brasileiro prolongou-se esse conflito que teve seu clímax na Questão Religiosa e só foi ter fim, paradoxalmente, com a proclamação da República e a consequente separação da Igreja e do Estado, deixando a Igreja sem a (duvidosa) proteção do Estado e empobrecida, mas livre para atuar sem peias. Que sinais se encontram, eventualmente, nos sermões da época de Pombal, que permitem entender essa mudança de modelo do Padroado?
  • Nos sermões dos séculos XVII e XVIII, de modo geral os pregadores se mostravam severos no combater os abusos e maus costumes da sociedade, ou se mostravam, mais bem, indulgentes e pouco propensos a ferir susceptibilidades da realeza, da nobreza, da alta burguesia?
  • Que influências do Iluminismo podem ser, eventualmente, notadas nos sermões do tempo? E de outras correntes de pensamento filosófico ou político que, na época, se manifestavam na Europa?
  • Sobre outros pontos polêmicos, como Inquisição, pureza de sangue, cristãos-novos, casos de moribus e eventuais escândalos do próprio clero, haverá eventualmente registros nesses sermões?
  • Do ponto de vista cultural, abrangendo costumes, valores e aquilo que se chama “história das mentalidades”, haveria aspectos dignos de nota a registrar?

 

Esses são, muito sumariamente, os pontos que me ocorrem sobre possíveis enfoques na pesquisa desse sermonário. Muitos outros haverá, talvez. Pode, também, acontecer que o exame do material se revele decepcionante, ou seja, leve à conclusão de que os sermões da época eram na sua maioria puramente retóricos e formais, meros exercícios de vaidade literária, sem exprimir em profundidade os verdadeiros embates ideológicos, políticos, sociais e morais que então estavam em jogo. Ainda se for essa a conclusão, não terá sido sem utilidade a pesquisa.

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

Frase a destacar: O homem parece tão cheio de si que não aceita sua condição de finitude, diz ter respostas para tudo, mas, de modo curioso, aumenta sua falta de sentido, sua angústia e solidão.

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