Porque amanhã é sábado – Novembro quando não chove

Pelo vidro da porta da sala, o sol. Uma alegria amarela começa a tingir de vida os móveis. Novembros são assim, sempre cheios de uma esperançosa luminosidade matinal. Nada me parece mais diurno do que os dois meses que fecham o ano. Já nas primeiras horas do dia, a existência, dourada, abre suas cascas sobre as flores do jardim. Devagarzinho, fios cor de ouro avançam pelas frestas das portas, pelas persianas, por entre fechaduras, trincos e janelas. O ladrilho frio e branco da cozinha primavera-se de um calor translúcido e vagaroso, mas de avanço constante. Pés de mesas e cadeiras começam a rebrilhar paulatinamente incandescentes na antecipação do verão que vem dos quintais por sobre os muros. Às sete horas da manhã a casa é já luz plena.

O alumínio do bule no fogo reflete um aro de força diurna que inibe os olhos. Alguém se preocupa. “Cuidado, isso entorta a boca!” Qual. A imagem de um fogão, de algumas panelas e um cheiro quente de café volatizam-se no ar, aquecendo o surrealismo das coisas e despertando ainda mais o calor dos seres. A mesa da copa é agora um espelho de luz. Mal sei como se consegue tomar o desjejum sobre ela. O jornal, ali por cima, também se faz branco de tão claro. E tão claro fica que as notícias do dia parecem menos ruins. Latidos de cães. Passos e conversas no corredor. Passarinhos. E luz. A interminável e intensa luz do ano que começa a querer terminar. (Desde criança, começo a sentir pelos olhos e pelo nariz a chegada do Natal, sua espiritualidade fresca e ao mesmo tempo calorosa, anunciando em pleno mês de novembro que a egrégora dos doze meses está quase a se fechar).

Vasos, espelhos, quadros, copos, bugigangas domésticas e a própria tela da televisão desligada iluminam-se de meio-dia. Impossível ficar na sala sem uma cortina de sonhos. Mãos, então, puxam tecidos sobre o vazio da alma. Como num conto de Bruno Schültz, as janelas agora cobertas por longas fazendas de linho branco engomado fazem a luz descer uma oitava. Ainda não somos sufocados pelo calor de janeiro. Apenas a luminosidade baça e leitosa do verão é que se anuncia antecipadamente nesses dias de ansiedade e expectativas. O sol tenta agradavelmente vencer as cortinas e as insufla de sua energia espectral. A tarde que começa a chegar vai se estendendo consciente, atenta, preguiçosamente reflexiva. Não há mistérios. Há bicicletas e risos. Deitando sobre o colo o livro cheirando à canela, espio a tília lá fora. Talvez haja tempo para subir nos troncos das árvores antes que o ano termine.

A noite chega e ainda há sol. Dezoito horas e o astro maior ainda não se pôs. Já está quase cadente, quase derradeiro, mas brilha seus últimos esforços já não tão quentes sobre as horas novas da falsa soturnidade. Recolhem-se as cortinas e as ilusões como velas de um barco. Um marinheiro caseiro avisa que há terra à vista e que já se pode viver sob a atmosfera natural que abunda pelas escotilhas da casa. A penumbra recolhe-se dos pés das mesas. Das cadeiras e dos ladrilhos da cozinha o brilho solar da manhã se dissipa. A primeira lua da noite surge luminosa, sorridente, viva. Os astros celestes celestam conformidades. Os dias, convertidos em noites, deixam seus vestígios explícitos. A susto, alguém diz que se faz hora. Mas a hora, mesmo, já quase não se faz mais.

Novembros, de nem sempre esperanças, são como os besourinhos dourados que nesta época saem da terra para morrem às cabeçadas na parede. O gole raso do uísque entre gelos ao fim das noites – essas agora sim sob chuva quase frequente – escancara de uma vez a verdade de que logo o ano termina, com as suas luzes chinesas iluminado as casas e as ruas a nos impingirem um sentimento misto em que se fundem nostalgias e alguma ansiedade – plenamente desprovido da ilusão de tantos outros natais. É novembro. Triste delicia. E os besourinhos batem alegres contra a parede.

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Alexandre Bragion é cronista desta Tribuna desde 2017.  

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