Marias e Clarisses

Camilo Irineu Quartarollo

 

“O mineirinho” é um conto de Clarisse Lispector, numa expiação e encomenda do corpo de José Miranda Rosa, abatido em 1962, com tiros nas costas, no pescoço, no peito, no braço esquerdo, na axila esquerda e perna esquerda já fraturada.

Por vezes preferimos nos desligar do noticioso neste país em estado de Clarisse, de luto, no qual o alvo é a própria sociedade consciente.

A análise balística revela as intenções do crime. Quantos tiros, tipos de armas, quais órgãos alvejados, se rosto, coração, boca ou cabeça. Porém, o ato cruel detona os gatilhos do Inconsciente e fazem adoecer Marias e Clarisses.

Quatro médicos foram alvejados com trinta e três tiros numa região da Tijuca, onde até a polícia tem medo de pôr as botas. Os que tomavam água de coco ao lado saíram em disparada pela orla enquanto os tiros pipocavam no quiosque. Após, sobraram as cápsulas anônimas, os corpos caídos e a mesa do sacrifício com a toalha posta para o próximo cliente – o chapeiro não fechou por luto e nem deixou de vender pães com presunto ao sabor da aragem sombria, sem grilos ou sirenes na noite.

Em 2019, na Vila Militar em Guadalupe do Rio, o músico e catador de recicláveis, Evaldo Rosa dos Santos, teve seu carro alvejado por uma salva de duzentos e cinquenta e sete tiros – claro que não foi um ‘incidente’ como disse o PR. Foi uma execução de quem estivesse dentro do veículo e pela suspeita infundada, cuja indenização foi determinada recentemente e nós cidadãos temos de pagar por esse crime do Estado.

Falam-se de um estado paralelo com suas leis próprias, a do cão. Ora, quarenta por cento dos brasileiros vivem com salários baixíssimos e esse paralelo excludente já vem desde séculos, inclusive num paralelismo linguístico, defunto por presunto, balas por azeitonas, polícia por gambé, presidente por ‘hóme da casa de vidro’ ou PR mesmo.

É muito grave quando a polícia ou militar, pelas paixões políticas ou ideológicas, mata por motivos fúteis, ao confundir gente comum e do convívio pelo uso de roupas puídas ou cor da pele, fazendo-as de seus vilões imaginários.

Em geral, quer se fazer crer que o morto mereceu ou deu azar. Uma desculpa esfarrapada, a “de que se está matando bandidos em confronto” e a de que é a solução única contra a violência que deveras se pratica. A questão de insegurança persiste e aumenta num círculo vicioso, reincidentemente, sangrando… nas exéquias de Clarisse:

“Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.”

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, ensaísta, autor de crônicas, historietas, artigos e livros

 

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