Alexandre Bragion
- Um mestre. Um caminho. Um lago. O carinho do vento em ondas sobre a água. Um lago. Um caminho. Um mestre. A água em ondas sob o vento-carinho. Cenário. Templo de um só momento em visão-inspiração. Patinhando sobre as águas, em veneno, um escorpião luta pela vida. A encosta escorregadia e úmida, o lago em imagem nublada ao derredor e o escorpião rolando três vezes antes de submergir. O mestre se levanta. Sua missão autoimposta se impõe. Ele arregaça as mangas do quimono – dedos em pinça – e atira-se à tarefa de salvar a vida peçonhenta que se afoga. Primeira tentativa: o dedo arde em fogo – o escorpião cravara-lhe a carne em veneno. O mestre é dor caída ao chão. O escorpião luta para não morrer. O mestre se levanta. Segunda tentativa: com a outra mão, outros dedos em pinça arrancam da água o escorpião, que foge para as pedras. As mãos do mestre são brasas de dedos. O escorpião não poupou seu salvador novamente. O aprendiz se apavora em medos de morte e gritos de desespero. O mestre agoniza em febre. Ante o olhar incrédulo do discípulo que o acode, ainda ensina o mestre: “a natureza dele é ferir. A minha, é ajudar.”
Moral à piracicabana: “tem gente que é tonta mesmo!”
- A sugestão veio de um amigo – a vida atribulada, o trabalho em excesso, jogos, bebidas, mulheres, desamores, desejos. O material do mundo a cobrar sua saúde. Não podia mais com aquilo. Queria ser diferente. Queria ver o mundo com outros olhos. Aceitou a sugestão. Largou-se do cigarro. Deixou a bebida. Enfiou-se num centro de meditação. A prática lhe ensinou o desapego. De olhos fechados, renunciava a tudo: orgulho, bens, gula. Sentia-se cada vez mais confiante. Depois, novos dias. Novas aulas. Novas meditações. Firme em sua certeza, abriu os olhos durante uma prática espiritual. Na sala abafada e escura, a nova colega até então despercebida suava em bicas: a camisa transparente colada ao corpo, a silhueta delineando sonhos. Ele cerrou as pálpebras com força de novo. Tentou lembrar-se de um mantra. Como era mesmo? “Hare… Hare…..” Como era? O Mulhadahara em fogo serpentino subindo pelo plexo solar. Abriu os olhos de novo. A colega prendia os cabelos. A camisa ainda mais transparente, os seios reluzindo sua derrota eminente. “Por Baba!” Não foi de jeito. Fechou de novos os olhos e correu às cegas a dar com a testa na porta. “Aonde vai,” perguntou o mestre. “Tentar um mosteiro franciscano! – e saiu tateando o templo.
Moral à piracicabana: “quem dorme com morcego, acorda de ponta-cabeça”.
- O mestre e seus discípulos estavam exaustos. Haviam caminhado por quase o dia todo. Ao cair da noite, encontraram uma árvore solitária à beira da estrada. O mestre ordenou que os discípulos se preparassem para dormir ali – pois à noite era fria e perigosa, e ele temia que pudessem ser assaltados por bandoleiros. Carregavam todos poucos pertences, mas entendiam que os dois jumentos aos quais eles puxavam pela estrada, na viagem, poderiam ser alvo de ladrões. Ao receberem as ordens do mestre para montarem acampamento, um dos discípulos resolveu colocar a fé do velho sábio à prova – e perguntou: “Mestre, amarraremos os animais ou rezaremos a Deus para que Ele nos proteja?” O mestre silenciou por um instante. Depois, colocou as mãos em prece diante do peito e ordenou: “Rezemos a Deus para que Ele nos proteja. Depois, amarremos os animais”.
Moral à piracicabana: “quem tem c…, tem medo.”
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Alexandre Bragion é cronista sem-budista e desmoralista piracicabano deste matutino desde 2017