O cotovelo da passagem de milênio

Armando Alexandre dos Santos (*)

 

A passagem do primeiro para o segundo milênio da Era Cristã assinalou o que, metaforicamente, podemos designar como um cotovelo na História, ou seja, uma significativa mudança de rumos.

Por volta do ano 1000, a população europeia, que até então estivera dispersa pelas zonas rurais, passou a ser cada vez mais atraída pelos burgos, aglomerados com maior concentração demográfica, nos quais se desenvolveu gradualmente uma nova mentalidade comunitária, com relações sociais diferentes das anteriores. Até mesmo os costumes, o relacionamento social, a vida religiosa, as artes e a cultura em geral tomaram conformação diferente da que existia no mundo rural. Nesse novo ambiente, os vínculos de natureza feudal tenderam a tomar nova figura, adelgaçando-se ou dissolvendo-se. Novas relações de poder e novos mecanismos administrativos se formaram natural e organicamente. As relações econômicas também se modificaram, com o crescimento do número de artesãos, a intensificação do comércio e a monetarização tomando o lugar do antigo sistema de escambo.

Uma vez cessada a ameaça constante das invasões periódicas de povos provenientes da Ásia ou das regiões orientais do continente europeu, e uma vez contida a ofensiva dos maometanos ainda senhores de boa parte da Península Ibérica, verificou-se uma tendência de apaziguamento e reordenação da vida em geral. Em consequência, as estradas se tornaram mais seguras, intensificando-se o costume das peregrinações e desenvolvendo-se o comércio. Por outro lado, a partir do ano 1000 verificou-se um progresso notável nas técnicas de agricultura, que teve como consequência uma sensível melhoria na produção de alimentos e, por tabela, na saúde da população, cuja expectativa de vida aumentou consideravelmente, a par de um aumento numérico na própria população europeia. Outra melhoria ocorrida nesse período foi a descoberta de uma série de inovações técnicas que facilitaram muito a vida dos medievais.

O processo de urbanização também alteraria o panorama cultural. Constituíram-se novas escolas nos ambientes dos burgos e cidades, deslocando-se assim a formação cultural dos mosteiros para as escolas capitulares ou catedralícias. Ao mesmo tempo, grande número de mestres particulares passaram a ministrar cursos livres que atraíam alunos e lhes ministravam ensino pago. Mantinha-se a tutela doutrinária da Igreja, mas pela sua própria dinâmica de funcionamento, as novas instituições de ensino tendiam a ministrar formação bem mais aberta para a vida temporal, com alunos que mostravam uma faixa de interesses mais ampla do que a da anterior formação monástica, a qual focalizava sobretudo a formação de monges e só de modo muito colateral e secundário formava leigos. As grandes universidades medievais, que atingiriam seu máximo esplendor no século XIII, também entraram em cena nos ambientes urbanos do início do segundo milênio.

Tal mudança de perspectiva produziu, na cultura em geral, efeitos imediatos. Desenvolveu-se muito a literatura cômica e inúmeras peças teatrais jocosas, que mostravam os lados cômicos e caricatos da vida, passaram a circular livremente; muitas delas foram preservadas e ainda hoje podem ser facilmente encontradas em antologias de textos medievais. Foi também no contexto da vida urbana que se desenvolveria uma ampla literatura escrita não mais em latim, mas em vernáculo. Nessa nova literatura urbana, a orientação religiosa de fundo permaneceu a mesma, não sendo negados ou questionados os dogmas da Igreja, mas os temas tratados foram cada vez mais se diversificando. Tratava-se de um movimento leigo, mais do que um movimento laicista, porque não se afigurava como em oposição frontal ao religioso-monástico. Foi precisamente esse o contexto cultural e psicológico em que se desenvolveria o trovadorismo, ponto de origem das literaturas europeias modernas, uma vez que se exprimiu em linguagem popular e fazendo uso de línguas novas, produzidas por derivação do antigo latim.

No mesmo contexto de urbanização também se manifestaram desdobramentos, aperfeiçoamentos e inovações nas artes em geral. O estilo românico, que se tinha desenvolvido largamente no final do primeiro milênio, evoluiu de modo natural para o gótico; tal evolução só poderia realizar-se em ambiente urbano.

No mesmo período verificou-se também o surgimento de um fenômeno novo tipicamente urbano, de natureza econômico-social, o qual teria consequências que se estendem até hoje. Esse conjunto de fatores permitiu o surgimento e posterior ascensão, nos burgos, de uma classe nova, a burguesia, que foi crescendo e enriquecendo cada vez mais. A burguesia representou, na estrutura tradicional da sociedade tripartida medieval, um elemento estranho dificilmente assimilável, pois não se identificava com o clero (que rezava), nem com a nobreza (que combatia e governava), nem com o povo (que trabalhava manualmente). A burguesia vivia do comércio e tendia a acumular riquezas.

Entre a classe nova e emergente da burguesia e a velha nobreza de origens feudais ocorreria – à maneira de uma luta de classes – uma oposição que teve prolongamento por centenas de anos e foi culminar, já no final do século XVIII, com a Revolução Francesa. Em resumo e em termos simplificados, podemos dizer que a sociedade feudal criou naturalmente condições para a concentração populacional nos ambientes urbanos. Essa concentração gerou, também naturalmente, condições de vida na qual surgiu uma classe social nova, a qual, pelo comércio e mediante o acúmulo de capitais, cresceu dentro do sistema feudal e, pouco a pouco, se transformou no câncer que o destruiria.

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

 

Frase a destacar: Desenvolveu-se muito a literatura cômica. Inúmeras peças teatrais jocosas, que mostravam os lados cômicos e caricatos da vida, circularam livremente.

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