Armando Alexandre dos Santos
O período medieval até hoje exerce um verdadeiro fascínio sobre a imaginação dos povos, mas não é fácil de ser estudado de modo objetivo. Pelo contrário, seu estudo oferece muitas dificuldades para o historiador. Antes de tudo, existe a barreira linguística. Depois, a lamentável tendência, notada em muitos autores, para evitar o exame da documentação primária medieval e se limitar a reproduzir, de segunda ou terceira mão, comentários de outros autores modernos. Também a dificuldade de entender a mentalidade dos medievais (ao mesmo tempo profundamente impregnada de religiosidade e afeita à guerra, à luta, aos combates) leva muitos autores a incorrer no “pecado mortal” do historiador: o anacronismo. Por fim, os preconceitos antimedievais e anticatólicos também colaboram para tornar o Medievo um período de difícil compreensão e análise objetiva para muitos dos nossos contemporâneos.
O fato que deu origem à Idade Média foi a queda do Império Romano do Ocidente, em 476. Foi o fim de um longo período de decadência do Império Romano, que havia atingido seu ponto de maior expansão no século II da Era Cristã. Desde então, durante cerca de 200 anos sucessivas levas de invasões de povos bárbaros devastaram o Império e acabaram por submetê-lo pela força, muito embora se tenham fundido com ele – ou com o que restou dele – do ponto de vista cultural,
Os bárbaros que em levas sucessivas adentraram e dominaram o Império constituíam um vasto aglomerado de povos, os quais, pouco a pouco, miscigenados entre si e com o que restou do Império romano decadente, deram origem à Idade Média cristã. Ocorreu a partir daí, sob a influência e o bafejo da Igreja Católica, uma enorme fusão cultural. As leis, os costumes, as tradições, as línguas, as crenças, tudo isso confluiu num imenso caldeirão intercultural e interracial, do qual brotaria, depois de prolongado (e doloroso) período de gestação, a Cristandade medieval.
Quando a antiga estrutura política e administrativa do Império Romano desmoronou, somente a Igreja Católica permaneceu de pé. Sem se abalar com o fim do Império Romano, ela o viu como um novo desafio apostólico. Foi a partir dessa situação, e em resposta a esse desafio, que se formou a Idade Média, um período histórico profundamente marcado pelo triunfo, em toda a Europa, dos ensinamentos da Igreja, que prolongadamente influenciou as instituições dos povos, das nações e dos reinos. Muitos séculos depois, o Papa Leão XIII, em um texto célebre, se referiu à Idade Média como uma época “em que a filosofia do Evangelho governava os Estados”.
No Medievo, a influência da Igreja suavizou, num processo pedagógico e pastoral lento, mas contínuo, a rudeza e a belicosidade dos bárbaros. Essa mesma influência conseguiu extinguir quase inteiramente a escravidão (a qual somente iria reaparecer com novas forças no período do humanismo renascentista); e conseguiu transformar o caráter das monarquias da Antiguidade, submetendo os soberanos, até então absolutos, a uma ordenação muito superior e benfazeja, de caráter moral. A Igreja, na verdade, sacralizou as monarquias e, de modo geral, todas as instituições.
Do ponto de vista cultural, a Igreja conservou, nos mosteiros, inúmeros documentos escritos recebidos da Antiguidade, mas não se limitou a isso. Ela também recuperou, reinterpretou e reaplicou a novas realidades ensinamentos de valor perene, herdados da Antiguidade. O pensamento da Grécia clássica, assimilado e adaptado pelo gênio latino dos romanos, recebeu ainda um terceiro componente, de importância fundamental: a influência hebreia, que chegou à Europa medieval por intermédio do Cristianismo, trazendo o elemento religioso da revelação divina. Da Grécia, de Roma e de Jerusalém provêm as três matrizes do pensamento do Ocidente cristão, pensamento esse profundamente lógico, coerente e completo. A gestação e a sistematização de tal pensamento em boa parte se deu nos ambientes monásticos medievais.
A Igreja efetivamente assumiu a direção cultural do Ocidente europeu, e plasmou assim uma realidade que seria denominada Civilização Ocidental e Cristã. A hegemonia do pensamento e do espírito da Igreja Católica, embora com percalços pontuais ao longo de toda a Idade Média, iria ser dominante até a passagem do século XIII para o XIV.
Sem dúvida, em todo quadro de luz, nunca faltam sombras. A Igreja é constituída por homens, de modo que, como não podia deixar de ser, não contou somente com santos em suas fileiras, mas também com pecadores e até bandidos. Sempre ocorreram, em todos os séculos de sua história, manifestações sublimes de santidade, de desinteresse e devotamento ao bem da humanidade, mas também ocorreram, em todos os tempos, manifestações dos piores lados da natureza humana. Não se pode negar que houve política, interesses em jogo e luta pelo poder na História da Igreja. São realidades lamentáveis.
A verdade é que a Igreja Católica possui uma dupla face. Por um lado, é pura, santa, imaculada, de uma beleza perfeita. Esse é o seu lado divino que sempre, até nos piores momentos, sempre existiu e sempre brilhou esplendorosamente. Sem esse lado divino seria impossível que uma instituição tão frontalmente contrária a todos os valores idolatrados pelo mundo, pudesse conservar-se viva e atuante durante dois mil anos. Mas há também o lado humano da Igreja, constituída por homens (eclesiásticos ou leigos) pecadores. Um historiador consciencioso não pode negar que coexistem, na Igreja fundada por Jesus Cristo, esse duplo aspecto.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: Não se pode negar que houve política, interesses em jogo e luta pelo poder na História da Igreja. São realidades lamentáveis.