Armando Alexandre dos Santos
Nas últimas semanas, publiquei nesta coluna uma série de artigos criticando a trilogia revolucionária “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Sinceramente, quanto mais analiso a Revolução Francesa e as consequências que ela produziu nos séculos que se seguiram, mais crítico fico em relação a ela. Li muito a respeito do Antigo Regime, da Revolução e do século XIX na França, tanto obras históricas (de análise, ou biografias, ou livros de memórias) como literárias.
O Antigo Regime estava, sem dúvida, doente. Era um organismo envelhecido e desequilibrado de muitos pontos de vista. Mas não precisava ser totalmente destruído e substituído por um sistema novo, mentiroso nas suas promessas e gerador de injustiças incomparavelmente piores do que as do Antigo Regime.
A Revolução Francesa, contrariamente ao que se supõe no Brasil, está longe de ser unanimidade na própria França. Ela é criticada e condenada por um número muito grande de franceses, apesar da propaganda oficial. Inúmeras pessoas têm o hábito de sempre colar os selos postais com a “Marianne” (a efígie da mulher pública, símbolo da república) de cabeça para baixo, como forma de protesto silencioso, mas eloquente, contra a propaganda oficial. Isso é comuníssimo na França. Muitos não reconhecem a Marselhesa como hino oficial, ou a cantam com uma letra diferente (“la marseillaise des blancs”), criticando a república e louvando a monarquia. No aniversário da morte de Luís XVI, há missas em praticamente todas as cidades e aldeias da França, encomendadas por particulares, por alma do rei falecido há bem mais de 200 anos. Isso é assim na França inteira, todos os anos.
Esses críticos da Revolução não são maioria, mas são uma minoria muito forte. E, em certas regiões particularmente castigadas pela Revolução Francesa (por exemplo, em Lyon, na Normandia, no Poitou, na Vendée), com toda a certeza os pró-revolucionários é que constituem a minoria.
Em 1889, no segundo centenário da revolução, foram lançados, na França, mais de 800 livros novos, sobre a Revolução e suas consequências. Pouquíssimos eram laudatórios. Na sua imensa maioria, eram críticos. No mesmo ano, a televisão francesa encenou com bastante realismo o julgamento de Maria Antonieta, devendo os telespectadores votar a favor ou contra ela. O resultado foi uma absolvição por imensa maioria.
Na verdade, a França está dividida quanto à Revolução Francesa. É uma divisão antiga, dificilmente superável. Atribui-se a Michelet a afirmação, frequentemente repetida, de que a Revolução Francesa foi um rio de sangue que dividiu a França, para todo o sempre, em duas partes que coexistem no mesmo país, mas irremediavelmente se contrapõem. A expressão “rio de sangue” para designar a Revolução foi também usada por Chateaubriand, nas suas memórias.
Entretanto, a Revolução Francesa trouxe, pontualmente, uma vantagem para a França e para a cultura em geral: o salvamento da Catedral de Notre-Dame.
De fato, a maravilhosa catedral de Notre-Dame, em Paris, destruída há poucos anos por um incêndio e atualmente em fase de restauração, uma obra admirada e visitada por turistas do mundo inteiro, estava para ser derrubada no governo de Luís XVI, e só foi salva pela Revolução Francesa.
O conselho do Rei havia debatido e chegado à conclusão de que era uma vergonha, um país como a França, ter como igreja principal um edifício medieval e “bárbaro”. E havia decidido a destruição da catedral, que seria substituída por um templo grego clássico, de proporções gigantescas. Ora, aconteceu que veio a Revolução Francesa e, com ela, ficou sem execução o projeto vandálico… e, quando houve a Restauração, em 1815, já sob os efeitos do Romantismo, a Idade Média voltava a ser valorizada, os padrões estéticos haviam mudado e a Notre-Dame voltava a ser o orgulho da França!
Durante todo o século XIX, o estilo gótico foi revalorizado. Foi nesse século que o arquiteto Viollet-le-Duc completou a Catedral de Notre-Dame, acrescentando a sua agulha altíssima, que nunca antes tinha sido colocada. E mais tarde, quando foram encontrados desenhos medievais com o projeto primitivo da Catedral, verificou-se que o plano inicial era realmente de fazer uma agulha muito parecida com aquela que Viollet-le-Duc projetou, baseado apenas na análise da estrutura geral do edifício.
O estilo gótico se espalhou pelo mundo inteiro, no século XIX e em boa parte do XX. A Catedral de São Paulo, projetada na primeira metade do século passado por Maximiliano Hehl, é, se não inteiramente, pelo menos predominantemente gótica. Na verdade, sua cúpula destoa bastante do gótico e, segundo alguns, foi introduzida conta a vontade de Hehl. Em Minas Gerais, no tradicional Colégio do Caraça, em fins do século XIX fizeram uma capela em puro estilo gótico, com uma agulha vertical altíssima, no meio de duas construções extensas, bem horizontais, em estilo colonial brasileiro puro. O mais incrível é que, no caso concreto do Caraça, essa interpolação de estilos diversos, que em princípio pareceria absurda, ali ficou muito bem, constituindo um conjunto harmônico de grande beleza, sobretudo para quem vê de longe, com a moldura das serras muito altas, em volta.
Outra coisa, que me lembre, também pode ser elogiada na Revolução: a introdução do sistema métrico decimal, que, embora não aceito em todas as partes, é inegavelmente útil. Quanto a tudo o mais, eu procuro em vão o que pode ser considerado resultado positivo.
Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia
Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.
Frase a destacar: A maravilhosa catedral de Notre-Dame, em Paris, estava para ser destruída no governo de Luís XVI, e só foi salva pela Revolução Francesa.