Coisas da vida

 Sergio Oliveira Moraes

 

Semana de comemoração do Dia das Mães, pouco tempo para tentar escrever sobre o Dia, sobre nossa Mãe. Pouco tempo diante do tema, das atividades extras que surgiram, do computador na assistência técnica, da minha dificuldade para escrever e sentir-me minimamente encorajado a submeter o artigo.

O esboço na cabeça: iniciar com Boris Fausto contando que seu último livro “Vida, morte e outros detalhes” não havia chegado a tempo de eu iniciar a leitura no primeiro de maio, conforme prometido. O atraso na leitura, talvez um detalhe.

O artigo da semana seria para as Mães, contar do olhar que eu havia aprendido sobre elas. Os últimos 5 anos me levaram a leituras que a influência paterna não havia conseguido, passei a interessar-me pela psicanálise. Uma necessidade insistente de tentar um mínimo de compreensão sobre o como e por que ocorre a identificação com o opressor, com quem banaliza o estupro, elogia o torturador – em poucas palavras, as causas de um “nó na garganta” que me acompanha desde 2016. Nos anos que se seguiram a 2018, intermináveis, Freud foi se tornando obrigatório, além de vídeos e leituras paralelas para ajudar, encorajar. Pode parecer muito, mas avancei pouco.

No domingo, em uma dessas leituras encontrei um olhar sobre as mães no livro “Constituição do Sujeito e Estrutura Familiar. O complexo de Édipo de Freud a Lacan”, de Michele Roman Faria, da Cabral Editora e Livraria Universitária. Literalmente me encantou: “Lacan, como Freud, ressalta o papel da mãe como aquela que, na relação com a criança, oferece algo além da simples satisfação das necessidades. A mãe ocupa-se da criança nomeando-a, significando seus gestos, seus choros e, por meio desse contexto marcadamente simbólico, fornece à criança uma determinada imagem de si mesma.” É da página 54, mas o encantamento da descoberta da senhora, Mãe, como alguém que “traduziu”, “decodificou” (aspas da autora) meus choros diversos (no princípio era o verbo) segue nas páginas seguintes. Sigo repetindo, sorvendo agradecido a doçura da descoberta e sem vergonha reconheço que nunca havia pensado sobre.

Na terça-feira à tarde, computador em casa, eu teria algum tempo para contar o que aprendi, escrever o artigo, nos dias seguintes não conseguiria. Ouço o rádio enquanto tento imitá-la em um ritual que a senhora repetiu quase que semanalmente enquanto suas mãos permitiram. A mesma mesinha sob medida, a mesma cadeira, a mesma tábua para apoiar os legumes, a faca mais leve, o cansaço chegava – o desejo de ser a senhora a fazê-lo não descansava. Nunca consegui repetir a espessura e a uniformidade dos cortes. Cortava e me encantava ao pensar que nossos afetos pelas mães eram de muito antes de nossas memórias conscientes, que a senhora foi quem primeiro traduziu meus choros em fome, em sono.

Suspenso pelo encantamento, tento o corte fino e preparo-me para após o almoço encarar o texto. Mas o rádio interrompe meu agradecimento tardio, Rita Lee partira.  A notícia me vira de ponta cabeça no ato, não mais Eros, o Amor, como em “Mania de você”, mas Tanatos, a Morte, como em “Coisas da vida”. Luto por ela e luto para me concentrar e escrever, não consigo.

Comemoramos o Dia das Mães com lembranças de todos nós e alguma incompetência na cozinha, apesar da professora. Ao menos reconheço que cada pedaço de legume ficou de um tamanho diferente, faltou capricho no corte e sal na carne. Reconhecer e agradecer à Mãe no Dia das Mães, mesmo que atrasado, já é alguma coisa, né Mãe? Diga que é. Só mais uma vez.

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Sergio Oliveira Moraes, físico e professor aposentado ESALQ/USP

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