Barbaroi, ethnos, genos

Armando Alexandre dos Santos

No artigo Políbio e a Etnicidade, cuja análise hoje se conclui, Erich Gruen discorre extensamente sobre o modo como Políbio empregou a designação de barbaroi (bárbaros, no plural) a gauleses, cartagineses e egípcios, muitas vezes em sentido neutro (como sinônimo de estrangeiro), outras vezes em sentido francamente pejorativo, não porém como decorrência forçosa de raça ou etnia.

No tocante aos romanos, Políbio os vê e os trata de modo mais bem dúbio, talvez por razões prudenciais facilmente compreensíveis em face de sua biografia. Alongaria demasiado a extensão destes comentários uma exposição, ainda que resumida, da vida de Políbio, incluindo sua permanência de 17 anos em Roma, para onde foi levado como refém garantidor de um acordo de Roma com a Liga dos Aqueus, e em cujo contexto cultural e político viveu a maior parte da sua vida. Significativamente, observa Gruen: “As atitudes de Políbio perante os romanos são complexas e mutáveis, uma mistura problemática de admiração e de decepção.” (art. citado, p. 84)

Depois de relacionar as poucas passagens em que, nos textos de Políbio, aparece a designação de bárbaros atribuída a romanos, Gruen nota que em todas elas a designação não aparece na voz narrativa do próprio Políbio, mas em discursos de outras pessoas: “Expressivo é o fato de Políbio jamais chamar os romanos de bárbaros em sua própria voz. (…) Políbio, seja de modo sincero ou prudente, evita aplicá-la [a designação] aos romanos.” (id., p. 85)

Os dois últimos tópicos de Políbio e a Etnicidade são dedicados por Gruen ao estudo da utilização, pelo historiador romano, dos termos ethnos e genos – profundamente correlatos entre si e ambos também relacionados, no contexto da análise que faz, com barbarós e seus cognatos.

Depois de registrar que Políbio utiliza com frequência as palavras ethnos e genos para designar grupos de pessoas ou coletivos, Gruen sustenta que essas designações estão muito longe de sugerir ou insinuar categorias raciais. Se Políbio emprega ethnos mais de cem vezes, na parte de sua volumosa obra que chegou até nós, cerca de 40% das vezes o faz com sentido claramente político, e não étnico, designando uma comunidade política coletiva, uma liga na qual se unem comunidades diversas com alguma finalidade política, diplomática ou militar. Nesse sentido, ethnos se contrapõe à polis, que é uma unidade política particular, específica e localizada em limites geográficos restritos.

Outras vezes, também de modo polissêmico, Políbio utiliza a palavra ethnos para designar genérica e imprecisamente um conceito que se aproxima de povo, ou de nação. Ou para designar o conceito geralmente compreendido pela palavra tribo – estágio intermediário entre a família patriarcal ampliada e a sociedade política já estabelecida de modo formal – independente, ou como parte integrante com identidade e autonomia próprias, de uma unidade nacional mais ampla. Ou, ainda, para designar uma extensão territorial ocupada por um determinado povo. Também em outras acepções Políbio empregou a palavra ethnos, mas em apenas quatro passagens a utilizou em contextos que comportam a associação de características nacionais a uma vinculação de sua pertença a determinado povo. Mas, mesmos nesses quatro casos concretos que Gruen analisa detidamente, o elemento étnico e racial não parece determinante.

O mesmo se diga de genos, outra palavra muito usada por Políbio, também em sentido polissêmico e multívoco. Genos apresenta afinidade com ethnos, e algumas vezes, no texto de Políbio, uma dessas palavras até poderia ser substituída pela outra sem prejuízo do sentido textual, mas elas não se confundem. Vejamos como Gruen explica o sentido de genos:

“Se investigarmos os usos por Políbio do termo genos, chegaríamos às mesmas conclusões. Etnicidade não é o cerne. Metade das mais de cem aparições da palavra em Políbio significa `tipo´, `forma´ ou `classe´. Por exemplo, Políbio utiliza a palavra logo no começo de sua obra ao perguntar qual `tipo de constituição´ os romanos utilizaram para conquistar o mundo conhecido. (…) O termo pode significar também `um tipo de estratagema´, `todo tipo de vinho´, `todo tipo de madeira, solo ou pedra´, `cada forma de decretos e proclamações´, `um tipo de leitor´, `outros tipos de animais´, `uma forma de acampamento´, `outro modo de andar´, `todo tipo de emboscada e ataque´, `esse tipo de fraude´, `essa forma de justificativa´, `esse tipo de assassinos, ladrões e invasores´. Muitos outros exemplos similares podem ser encontrados no texto de Políbio. A tarefa principal de genos é assinalar uma categoria.” (art. cit., p. 98)

Trata-se, porém, de palavra versátil que também pode comportar um sentido muito próximo ao de ethnos. Prossegue Gruen:

“A versatilidade da palavra, no entanto, pode revelar outros significados. Como ethnos, embora menos frequente, genos pode trazer a noção genérica de povo ou nação, sem a indicação de como a identidade coletiva é definida. (…) A imprecisão do termo pode ser ilustrada pelo fato de Políbio usá-lo num mesmo contexto que ethnos, uma combinação confusa na qual a distinção entre eles – se é que há  uma – é completamente obscura: `os gene mais bélicos dos ethne ocidentais da Europa´. Diante disso, genos parece ser uma subdivisão de ethnos, mas não há mais nada nas Historias que nos leve a essa conclusão. Tal junção indica sobreposição e confusão – e não distinção e exatidão.” (id., p. 98)

Em alguns casos, Políbio usa a palavra genos para designar o local de origem de alguma pessoa, ou para indicar uma genealogia familiar, quase sempre em se tratando de uma linhagem real ou aristocrática, ou ainda, em dois casos específicos, para designar o gênero masculino ou feminino (id., 99-100). Mas sempre esteve ausente, no pensamento polibiano, a ideia de um genos, ou de um ethnos, como elementos definidores de identidade étnica ou racial.

Numa breve conclusão, Gruen resume, de modo taxativo, todo o seu artigo: “Políbio talvez tenha tido pouca simpatia pelo que era estrangeiro. Ele certamente não era nenhum universalista e nenhum advogado pela abolição das diferenças. O `bárbaro´ estava alheio. Os adversários da Grécia e de Roma estavam fora da esfera que Políbio considerava congênita e empática. As diferenças eram sociais, morais e convencionais. O historiador evitava traçar diferenças étnicas ou raciais.” (idem, p. 100)

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Aqui ficam, à guisa de mero ensaio, estas reflexões sugeridas pela leitura e análise do instigante texto de Erich Gruen, acerca dos conceitos de etnicidade e alteridade na obra de Políbio.

 

 

 

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia

Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

Frase a destacar: Políbio talvez tenha tido pouca simpatia pelo que era estrangeiro. Ele certamente não era nenhum universalista e nenhum advogado pela abolição das diferenças.

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