Viver. Reviver. Sobreviver. Existir. Resistir. Subsistir. Galáxia verbal em noites de céu sem estrelas, sem Haroldos de Campos em campos de resistência poética. Então, “começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para começar com a escritura”. Ver. Reviver. Sobreviver. Existir. Subsistir. Resistir. Pois eu também quando meço meu começo, recomeço a viagem. E começo-recomeço a ser, de novo, no tempo, o que só sou quando escrevo. Quando e durante. Sobrevivo. Não antes nem depois. No tempo. No tempo da escrita. No tempo da escrita sobre a escrita – sobrescrita. Modelo. Galáxia haroldiana em realidade presente, em representações de ações presentes no tempo. Porque a viver começo quando escrevo e meço, quando meço e escrevo. Sobrescrevo. Escravo.
“Ouvindo-te dizer: eu te amo, creio, no momento, que sou amado. No momento anterior, e no seguinte, como sabê-lo” – escreveu Drummond, pobre e grande, em seu estado mais puro e duro de palavra. “Quero que me repitas até a exaustão, que me amas, que me amas, que me amas. Do contrário, evapora-se a amação, pois ao não dizer: eu te amo, desmentes, apagas seu amor por mim”. Grande Drummond, pobre e coitado, feito ouvido, feito texto, tecido, crendo ser somente o dito o que pode ser vivido no momento exato. Comunicado constante, instante por instante, que não pode ser sanado, que não pode ser parado, que não pode ser deixado verbalmente de lado, ausente de ser emanado. Feito tempo. Feito ação constante – ação constante do ser amado. Constatação-instante do amor que só é amor ao ser verbalizado.
Por isso sobrescrevo. Sobre escravo. E cravo no texto que escavo o que existo em mim, o que resisto ao fim, escravo do escrever contínuo que é o escrever sobre viver o texto que escrevo escravo. Galáxia de meus amores, de minhas dores, palavras e rastros no astro dos tempos, nas constelações dos léxicos, no finitude infinita dos vocábulos. Misturo línguas à minha, salivas de palavras estrangeiras a enroscarem-se eróticas em minha boca. Depois, entreteço. Entrelaço. E arremesso no universo a tela mental do que peço em laços verbais, carnais e desiguais, mas contínuos. Sintaxe de destinos. Desatinos. Idos sentidos, sons e letras: cometas no espaço – barra, fonemas, traços, corpos, composição. Compor ação. Coração que se cria, que se recria, que se procria quando escrevo e meço o que escrevo. Senão, morro – tão logo, tão breve termino e proscrevo.
“Exijo de ti o perene comunicado. Não exijo senão isto, isto sempre, isto cada vez mais. Quero ser amado por e em tua palavra. Nem sei de outra maneira a não ser esta de reconhecer o dom amoroso, a perfeita maneira de saber-se amado: amor na raiz da palavra e na sua emissão, amor saltando da língua nacional, amor feito som, vibração espacial” – escreveu Drummond enquanto amava ou fingia que amava enquanto escrevia ou fingia que escrevia sob a estrela fria de seu estado poético verdadeiro ou falso. Eu te amo: colocação pronominal tão lusitanamente agramatical em terras brasileiras onde tudo, tudo, é mais triste e natural. Eu te amo: pronome pessoal, objeto direto em forma de pronome e, depois, verbo primordial. Amar. Drummondiana ou Haroldiana construção espacial a existir, a sobre-existir, a resistir apenas na sua encarnação de palavra-lava, de desejo verbal.
Por isso insisto. Por isso, resisto. Pois só existo mesmo enquanto escrevo. Por isso, sobrevivo. Por isso, sobrescrevo. Subsisto. E revivo na escrita do meu texto em duração, na escrita do meu texto estendido em ação sobre a página branca, na escrita-pintura do meu texto-mancha-de-texto sobre a página branca da dor, letra feito armação de ferro, concreto, que sabe que só há amor se assim ele for, e somente, galáxia lexical que fragmenta a ação.
E como há mais a ser viver em outros tempos?
Alê Bragion é cronista.