“Políbio e a Etnicidade”: um ensaio corajoso

Armando Alexandre dos Santos

 

Uma vez feita, nos artigos anteriores, a devida apresentação de Erich Gruen, cabe agora falar do seu importante artigo Políbio e a Etnicidade.  Em português, o seu texto é facilmente encontrável no livro Problemas de Historiografia Helenística, de Breno Battistin Sebastiani, Fernando Rodrigues Jr., Bárbara da Costa e Silva (coords.), editado pela Universidade de Coimbra em 2019 (p. 81-102).

Ressalte-se desde logo que se trata de um texto ensaístico, o que de modo algum significa que tenha sido escrito sem maior reflexão ou de modo superficial. Pelo contrário, ao leitor que analise com cuidado sua estrutura e sua redação, fica claro que não se trata de um texto escrito às pressas de modo mais ou menos improvisado, mas é fruto de muitos anos de pesquisa e reflexão sobre um tema ao qual Gruen atribui importância transcendental.

Chama a atenção que um assunto tão central no foco das atenções de Gruen na segunda – e mais importante, porque indicativa de sua maturidade – fase da sua vida intelectual e acadêmica tenha sido tratada num mero ensaio, e não em um livro formalmente escrito de forma definitiva. No texto de Políbio e a Etnicidade não está explicitamente declarada a condição de mero ensaio, mas Gruen a realçou no Abstract de seu estudo: “The essay explores Polybius´ remarks about `barbarians´ in general, and about individual peoples like Egyptians, Gauls, and Carthaginians.” (art. citado, p. 81) Muitos livros Gruen publicou em sua carreira, mas nesse ponto tão central de seu pensamento acerca do mundo antigo, quis produzir um ensaio. Por que quis proceder assim?

Gruen deu a público Políbio e a Etnicidade em 2018, aos 83 anos de idade. Terá ele talvez receado que lhe faltasse tempo para redigir uma obra definitiva e, por isso, preferiu desde logo divulgar, à guisa de ensaio, suas reflexões? É uma pergunta que se pode fazer.

O fato é que nesse texto Gruen se mostra corajoso e não hesita em enfrentar ideias fixas e paradigmas bem estabelecidos. Já tinha demonstrado essa coragem, por exemplo, quando ousou sustentar tese frontalmente contrária à de Sir Ronald Syme. Agora, em Políbio e a Etnicidade, enfrenta outro tipo de ideias de senso comum assentadas à maneira de dogmas. Mais concretamente, se volta contra a ideia de que o menosprezo dos antigos em geral, e de Políbio em particular, em relação aos bárbaros se devia a preconceitos raciais.

A historiografia do Novecento, tão marcada pelo positivismo, sem embargo de ter sido tão criticada, a justo título, pela École des Annales, influenciou profundamente a historiografia do século XX e continua ainda a exercer influência neste início de século XXI. Deve-se a essa influência remota do positivismo a tendência para os estudiosos do Medievo e da Antiguidade projetarem anacronicamente no passado critérios e valores prevalentes no século XIX – precisamente o século em que as afirmações e as alteridades nacionalistas e raciais atingiram seu paroxismo. Nas últimas décadas desse século, muitas potências europeias se lançaram em empreendimentos colonialistas na África, sobretudo a partir da Conferência de Berlim, realizada em 1884-1885. Nesse contexto, o foco das atenções se voltou de modo muito marcado para as diferenças étnicas e raciais, de modo que se supervalorizou o critério racial para a avaliação dos povos e dos indivíduos; foi assim que se procurou justificação para que nações europeias sem nenhuma tradição colonialista, como por exemplo a Alemanha e a Bélgica, de repente se arrogassem direitos sobre extensas áreas africanas. Esse colonialismo inteiramente artificial do século XIX difere profundamente da expansão colonial luso-espanhola dos séculos XV e XVI, a qual se deu em contexto político, cultural e psicológico também muito diferente das colonizações inglesas e holandesas dos séculos XVII e XVIII. Aprofundar esse tema exigiria um espaço não disponível no presente trabalho.

Em nome de uma Ciência mal entendida fixaram-se parâmetros pelos quais os europeus se julgavam essencialmente superiores a povos de outras procedências étnicas.

Como dito acima, autores influenciados por essa mentalidade de cunho positivista tenderam a interpretar anacronicamente realidades do passado, como se os homens que viveram naquele passado compartilhassem os mesmos preconceitos raciais do século XIX, na mesma medida e na mesma forma destes, o que não corresponde à realidade. No caso concreto de Políbio, as referências depreciativas aos bárbaros teriam como motivação primeira e mais importante a diferenciação étnica e racial.

A meu ver, é contra essa tendência que se volta o ensaio de Gruen, um autor tão afinado com a História Cultural característica da “terceira geração” da Escola dos Annales.

Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

Frase a destacar: No século XIX, o foco das atenções se voltou de modo muito marcado para as diferenças étnicas e raciais, de modo que se supervalorizou o critério racial para a avaliação dos povos e dos indivíduos.

 

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