#FALAPAULOSOARES – Em reverência às tradições africanas: o 21 de Março

Quem me acompanha nesta coluna semanal, está acostumado a ver aqui conteúdo a respeito do trabalho desenvolvido pelo Caphiv (Centro de Apoio ao HIV/Aids e Hepatites Virais) e assuntos correlatos, como prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), assim como questões relacionadas à prevenção de doenças da população em situação de rua e outros grupos mais vulneráveis.

Nesta edição, vou tratar de um assunto diferente. Mas quero trazer por conta de sua relevância para a maior parte da população que é mais sofrida do País e a que mais depende de ações do poder público. Falo da recente sanção, feita pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, instituindo no País o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé (Lei 14.519/2003).

Proposta inicialmente em 2010, pelo então deputado federal Carlos Santana (PT/RJ), foi assumida, em 2015, pelo deputado Vicentinho (PT/SP) e apresentada à Câmara dos Deputados na forma do projeto de lei 3551, o qual previa a celebração em 30 de Setembro. No entanto, com uma emenda do Senador Paulo Paim (PT-RS), o projeto se tornou 2053/2022 e alterou proposta, trazendo a data par 21 de Março.

A data escolhida para a comemoração é também o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, marco estabelecido pelas Nações Unidas (ONU) tendo como referência o episódio que ficou conhecido como “Massacre de Shaperville”, em 1960 na África do Sul. O massacre ocorreu quando cerca de 20 mil sul-africanos protestaram contra a determinação imposta pelo governo da época – conhecido como regime do apartheid –, de limitar os locais onde a população negra poderia circular.

Em resposta à manifestação que era considerada pacífica, militares da África do Sul atuaram violentamente para reprimir o protesto. Tiros foram disparados contra os manifestantes, resultando na morte de 69 pessoas.

Na justificativa do PL de 2015, o deputado Vicentinho argumenta em defesa do Candomblé: “Originário da África, da cidade de Ifé, comunidade da etnia Iorubá, também conhecida como Nagô, localizada no Sudoeste da atual República Federal da Nigéria, desembarcou no Brasil junto com as grandes levas de escravos no século XVI. Atualmente reconhecido como religião, foi bastante marginalizado num passado não muito distante”, destaca o parlamentar.

Inicialmente proibida e considerada “ato criminoso”, a prática do Candomblé chegou a ser impedida por vários governos, sendo seus adeptos perseguidos e presos pela polícia. O sincretismo entre a religiosidade africana e o catolicismo sempre foi, até mesmo por conta desse histórico de perseguições e de discriminação, um dos aspectos mais destacados do Candomblé, que continuou a cultuar seus Orixás, resguardando-os sob a aparência de santos católicos.

Vicentinho aponta, ainda, na justificativa do PL, que o sincretismo do Candomblé teve origem na África, quando, à época da colonização, coexistiu uma grande diversidade de povos e culturas interagindo entre si. “O Candomblé é uma religião monoteísta, na qual existe um único Deus criador do universo e deuses menores que regem a natureza e a vida dos homens. Estes últimos são os Orixás, divindades supremas que possuem personalidade e habilidades distintas, bem como preferências ritualísticas como cores, dias, danças, instrumentos, comidas e saudações”, enfatiza.

A religião exige de seus adeptos uma rígida disciplina no cumprimento de suas obrigações religiosas. Os rituais do candomblé são realizados em templos chamados casas, roças ou terreiros que podem ser de linhagem matriarcal quando somente as mulheres podem assumir a liderança, patriarcal quando somente homens podem assumir a liderança ou mista quando homens e mulheres podem assumir a liderança.

As diversas religiões afro-brasileiras formaram-se em diferentes áreas do Brasil. Há cerca de 40 anos, o Candomblé era tido como religião de negros, restrita basicamente aos Estados da Bahia e de Pernambuco aos poucos grupos de descendentes de escravos cristalizados aqui e ali em distintas regiões do País. Com a intensificação do

movimento migratório da população do Nordeste em busca das grandes cidades industrializadas do Sudeste e Sul do país, a partir dos anos 1960, o Candomblé passou a se apresentar como religião também para segmentos da população de origem não africana. Assim, o Candomblé encontrou condições sociais, econômicas e culturais muito favoráveis para o seu renascimento em locais em que a presença de instituições de origem negra era, até então, inexpressiva.

Atualmente, o Candomblé é uma religião que cresceu em todo o Brasil. Somente na cidade de Salvador existem 2.230 terreiros registrados pela Federação Baiana de Cultos Afrobrasileiros. Segundo pesquisas recentes, cerca de três milhões de brasileiros, ou 1,5% da população total, declararam o Candomblé como sua religião.

Depois de tanto tempo de tramitação no Congresso Nacional – entre Câmara dos Deputados e Senado Federal – finalmente o 21 de Março foi reconhecido, com a importância que a data é revestida, seja pela lembrança dos antepassados que lutaram para que a cultura de matriz africana fosse preservada, seja pela importância atual que tantos religiosos e ativistas desempenham em manter as tradições oriundas da África, contribuindo para a convivência de diferentes etnias e formas de expressar a fé.

 

Paulo Soares, presidente do Caphiv (Centro de Apoio ao HIV/Aids e Heptatites Virais).

 

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