Sergio Oliveira Moraes
– Água, mamãe, água!
Crianças choravam pedindo água.
Água havia ali bem perto, nas casas, nos pátios, mas era proibido sair das fileiras.
– Água, mamãe, água!
(“A noite”, de Elie Wiesel, Editora Sextante, 2021, p. 40).
Crianças, todos os judeus de Sighet (hoje parte da Romênia) aguardando os vagões de carga que os levariam aos campos de concentração. Há que voltar a eles. Preciso agradecer e homenagear a professora Adriana Dias, falecida precocemente dia 30 último.
Tomei conhecimento dela pela sua pesquisa sobre neonazistas no Brasil. Foi por seu monitoramento que fiquei sabendo que o número de células neonazistas em nosso país saltou de 75 para 530 de 2015 a 2021. Foi ela também que encontrou publicada em “sites” neonazistas, em 2004, uma carta do ex-presidente Jair M. Bolsonaro (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/07/28/pesquisadora-acha-carta-de-bolsonaro-em-portais-neonazistas.htm).
Lendo seu obituário soube, entre tantas outras coisas, que sofria com a Síndrome dos Ossos de Vidro (o nome vem da facilidade com que os ossos do corpo se quebram), que foi referência na luta pelas pessoas com deficiência, que coordenou a Associação Vida e Justiça de apoio às Vítimas de Covid-19. Aos 53 anos – cedo demais – ela se foi. Fiquei particularmente triste e indignado, cedo demais. Desculpe o egoísmo, Professora. Seu sofrimento, dezenas de internações e cirurgias, ossos se quebrando, um fatal câncer no cérebro – e eu pensando na importância do seu trabalho. Eles estão entre nós e são muitos. A senhora alertou.
O choro das crianças judias pedindo água, a importância de lembrar, refletir sobre o que levou ao nazismo, seu trabalho professora, para que não se repita. Mas desde que chegaram as fotos, as notícias, ouço o choro das crianças Yanomami: “- Água, mamãe, água!”. Penso nesses choros, das crianças em “A noite”, das crianças Yanomami. Penso se não há algo em comum que vai além da dor física: a dor de ver seu próprio povo aviltado, exterminado. Para quem se importa, como compreender que o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (do desgoverno Bolsonaro) foi contra o envio obrigatório de água e leitos de UTI para os yanomamis durante a pandemia? Negar até água potável?
Como compreender quem tem uma absoluta indiferença pela vida do outro? As vidas dos povos originários, dos humildes, dos negros, das minorias incomodam. As vidas dos judeus também incomodavam e, para muitos, ainda incomodam. Há algo em comum com a tragédia que assistimos em nosso país?
Não por acaso, Hannah Arendt em seu livro “Origens do Totalitarismo” trata – na Parte II – do tema Imperialismo – e aí do colonialismo como parte das origens do nazifascismo que virá (os boêres construíram campos de concentração na África do Sul, para ficar em um exemplo). Não por acaso somos um país colonizado, com um passado escravagista que se nega a passar. Não por acaso essa colonização também é marcada pelo extermínio dos povos originários. Talvez em comum também o genocídio dos povos indígenas. Não é comparação, não teria conhecimento e nem direito de fazê-lo, mas minha revolta é comum, e por mim posso falar.
E para compreender a possível aplicabilidade do termo ao que ocorreu com o povo Yanomami nos últimos 4 anos, bem como sua não novidade, há que ler a entrevista do subprocurador-geral da República, Luciano Mariz Maia, que atuou na primeira, e por enquanto única condenação de genocídio contra os povos originários, ejustamente do povo Yanomami, em 1993 (https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/01/inquerito-sobre-genocidio-precisa-subir-cadeia-de-comando-diz-subprocurador-geral-da-republica.shtml).
Ler para não esquecer, para contar o que está acontecendo e que nunca deveria acontecer. Para que nunca mais uma criança precise implorar: ”- Água, mamãe, água!”.
Obrigado, professora Adriana Dias por alertar, ajudar a compreender, descanse em paz.
Sergio Oliveira Moraes é físico e professor aposentado da Esalq/USP.