Armando A. dos Santos
Muitas profissões têm seus Santos padroeiros. Alguns foram oficialmente designados pela Santa Sé; outros não o foram oficialmente, mas são há muito tempo tradicionalmente invocados pelos fiéis de determinada profissão ou determinado estado de vida, ou como protetores em determinadas necessidades. A Igreja Católica sempre viu com bons olhos essas sadias tradições do povo fiel.
Nada impede, aliás, que os fiéis de uma determinada profissão livremente procurem, nas vidas dos Santos, traços em comum com suas próprias vidas e, encontrando-os, venerem aqueles Santos como seus especiais protetores. Nisso, a Igreja deixa total liberdade aos fiéis.
No Brasil, a numerosa e eficiente classe das secretárias tem o piedoso hábito de invocar São Jerônimo como seu especial padroeiro e protetor. O mesmo fazem os tradutores. É muito explicável esse costume, pois São Jerônimo exerceu efetivamente, durante algum tempo, funções de secretário do grande Papa São Dâmaso I, e foi também tradutor, dos mais categorizados.
São Jerônimo, que viveu nos séculos IV e V, era natural da Dalmácia (na região da atual Croácia) e recebeu na infância formação católica, mas só foi batizado aos 20 anos. Possuidor de uma cultura clássica das maiores do tempo, é considerado um dos mestres da língua latina. Aproveitou integralmente sua imensa cultura no serviço da Igreja, lutando contra as heresias e defendendo a Fé católica.
Atraído pela vida isolada e recolhida, na oração e nas austeridades, nem por isso deixava de participar ativamente, desde os vários locais em que viveu como ermitão, das grandes controvérsias do mundo culto de então.
Foi secretário do Papa São Dâmaso, e recebeu deste o encargo de traduzir para o latim os Livros Sagrados, diretamente dos originais gregos ou hebraicos, de modo a haver uma única versão oficial das Escrituras, para que não fossem estas deturpadas pelos hereges dos séculos futuros. Essa foi a origem da Vulgata, escrita na língua vulgar para poder ser lida e entendida pelo povo cristão. Na fase final de sua vida, permaneceu em Belém, na Palestina, onde dirigiu um mosteiro de monges e deu assistência a um mosteiro feminino. Ali faleceu no ano de 419. Sua festa litúrgica se celebra no dia 30 de setembro.
O Papa São Dâmaso, que teve tanta importância na vida de São Jerônimo, nasceu na cidade lusitana de Guimarães e foi irmão de Santa Irene. Também possuía grande cultura, era arquivista e poeta, e tinha também gosto pela arqueologia.
Ordenou a organização dos arquivos da Igreja, conservando versões fiéis e autênticas dos escritos dos primeiros Padres e mandando destruir versões apócrifas e deturpadas, para que no futuro não pudessem ser aproveitadas por hereges. Foi com a mesma intenção que incumbiu seu secretário, São Jerônimo, de fazer uma tradução latina das Escrituras, Ordenou que fossem feitas escavações e obras de conservação nas catacumbas, abandonadas desde que Constantino dera liberdade à Igreja, em 312. Pessoalmente redigiu, em versos, os epitáfios dos incontáveis mártires que iam sendo localizados nas galerias subterrâneas de Roma.
Parece ter querido homenagear seu pai, que também se chamava Dâmaso, consagrando a sua memória o edifício que mandou construir para abrigar os arquivos da Igreja. Dâmaso pai exerceu funções notariais e foi, mais tarde, ordenado sacerdote. É o que se depreende dos seguintes versos, nos quais Dâmaso filho deu testemunho, não só do seu trabalho arquivístico e da sua preocupação com a documentação eclesiástica, mas também de amor filial:
Hinc pater exceptor, lector, levita, sacerdos,
creverat hinc meritis quoniam melioribus actis,
hinc mihi provecto Christus, cui summa potestas,
sedis apostolicae voluit concedere honorem,
archivis, fateor, volui nova condere tecta,
addere praeterea dextra laevaque columnas,
quae Damasi teneant proprium per saecula nomen.
(Tradução: Porque o pai, notário, leitor, diácono e sacerdote, / cresceu em méritos por obras cada vez melhores, / e a mim, já idoso, quis Cristo, a Quem compete o sumo poder,/ conceder-me a honra da Sé apostólica, / para os arquivos, confesso, quis construir um nova cobertura, / e ademais acrescentar-lhe colunas à direita e à esquerda, / as quais conservem o nome de Dâmaso pelos séculos.)
Por influência de São Dâmaso foi retirada do Senado romano a estátua da deusa Vitória, sendo assim eliminado esse vestígio do paganismo oficial. Foi um dos primeiros Papas a definir explicitamente o primado do Papa sobre a Igreja Universal, com uma autoridade que lhe vem de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não por delegação dos demais bispos ou de concílios. Apoiou Santo Atanásio em sua luta contra o arianismo e combateu tenazmente essa, como diversas outras heresias do tempo.
Faleceu em Roma, no ano de 384. Seu pontificado, que durou 18 anos, foi dos mais fecundos de toda a História da Igreja.
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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba