Justiça distributiva e epiqueia

Armando Alexandre dos Santos

 

Concluímos neste artigo o estudo do conceito de justiça distributiva, tão caro a Aristóteles e, como vimos, já presente no pensamento de Platão.

Na base desse conceito está a ideia de que a verdadeira e justa igualdade entre os homens não consiste em que todos sejam e tenham o mesmo, mas em que cada qual seja e tenha aquilo que lhe é proporcionado. Proporcionado a quê? À harmonia do conjunto social, entendido não como um mecanismo frio e sem vida, mas como um organismo vivo, com dinamismo e vitalidade, com órgãos distintos funcionando simultaneamente, cada qual na atribuição que lhe compete. Todos os órgãos, cada qual a seu modo, se beneficiam da harmonia do conjunto, assim como todos os órgãos do corpo humano, cada qual a seu modo, são prejudicados quando um deles adoece; na verdade, o defeito ou falha de um órgão acarreta uma situação de enfermidade para o organismo todo; se meu fígado, ou meu joelho,ou meus dentes doem, meu organismo inteiro está doente e sofre.

Da diversidade de funções decorre, naturalmente, uma diversidade de encargos, de direitos e de deveres, assim como de honras e riquezas. Na base de tudo, insista-se, está a ideia de uma igualdade fundamental não aritmética e rígida, mas geométrica e proporcionada, que atribui a cada qual aquilo que lhe é devido, de acordo com o princípio jurídico “suum cuique tribuere”, formulado inicialmente por Ulpiano (150-223). Esse o pensamento de Aristóteles.

Nada mais errado, pois, do que ver igualitarismo – no sentido moderno do termo – no pensamento político aristotélico. A igualdade aritmética, entendida como ideal após a Revolução Francesa e imposta ditatorialmente pelos regimes totalitários de esquerda, absolutamente não se coaduna com a ideia aristocrática – e também platoniana- de equidade.

O ideal de igualdade pós-Revolução Francesa é que todos os indivíduos, individualmente considerados,tenham e sejam o mesmo, numa concepção aritmética de igualdade. Para Platão e Aristóteles, o ideal é que todos os indivíduos tenham condições de viver bem e virtuosamente, mas inseridos num conjunto social orgânico – o que supõe funções diferenciadas. Assim, para todos viverem bem, há que ser equitativa (ou seja, proporcionadamente desigual) a distribuição dos bens e das honras. Essa a concepção geométrica, ou proporcional, da igualdade.

Outro aspecto importante a considerar é que Aristóteles desposa a ideia de um Direito Natural (desenvolvida pelos estoicos e aceita pelo cristianismo), do qual as leis humanas são derivações. A justiça das leis depende da sua concordância com esse Direito Natural que lhes é anterior. Daí não ser moralmente obrigatório o cumprimento de uma lei injusta: “Lex injusta non obligat”-esse o ensinamento recorrente de São Tomás de Aquino no seu Tratado de lasLeyes (in Suma Teologica. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1956, t. VI, p. 3-204). Daí também proveio o velho e sábio ditado dos juristas de orientação jusnaturalista: “Pro jurequamvis contra legem” – pelo Direito, ainda que contrariando a lei.

Para Aristóteles, se uma lei geral positiva produzir, quando aplicada a um caso concreto, uma situação de manifesta injustiça, o princípio da equidade, ou igualdade proporcional, exige que não se aplique essa lei, ainda que, note-se, ela seja justa e boa em si mesma e deva ser aplicada à generalidade dos casos. A essas exceções se aplica o princípio da equidade, que provém do grego “epieikéia”. Nos tratados de Teologia Moral, o termo epiqueia é frequentemente usado. Epiqueia é, pois, a corretiva adequada para evitar as injustiças eventuais produzidas pela generalização absoluta dos princípios normativos. Deve, por princípio, ser excepcional, porque se fosse demasiadamente frequente destruiria a própria lei geral.

Somente as leis gerais divinas são perfeitas, as leis gerais humanas, por mais sábias e justas que sejam, sempre comportam exceções e são, portanto, imperfeitas. Aplicar “quadradamente” uma lei geral humana a um caso particular em que o bom Direito pede uma exceção é tão injusto quanto não aplicar a lei nos inúmeros casos em que ela deve,também em bom Direito, ser aplicada. Daí a necessidade de uma autoridade soberana, colocada acima dos juízes, e com capacidade para julgar quando o julgamento dos juízes foi excessivo. Cabe aos juízes executar a lei, condenando, por exemplo, a uma penalidade quem cometeu um delito punível com tal pena. Mas compete ao soberano ou chefe de Estado a prerrogativa do perdão ou do indulto, por onde suspende a aplicação da pena que eventualmente se torne excessiva. Essa prerrogativa, o soberano a exercerá algumas vezes, mas poucas, pois seria irregular e inconveniente que as sentenças judiciais fossem frequentemente anuladas por autoridade superior.

Uma crítica que se pode justamente fazer ao ordenamento jurídico e institucional pós-Revolução Francesa é que ele é individualista, considerando o indivíduo isoladamente e relacionando-o diretamente com o Estado. A concepção anterior de sociedade, baseada na sabedoria de Platão e de Aristóteles e desenvolvida admiravelmente pelos pensadores cristãos (especialmente Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) é que a sociedade é um todo orgânico composto não de indivíduos, mas de famílias. É a família, e não o indivíduo, a célula-mãe da sociedade. A Revolução Francesa pretendeu levantar cada indivíduo à condição de cidadão e julgou que com isso o nobilitou extraordinariamente, porque ele deixou de ser súdito… Na verdade, a condição de cidadão, que em tese significa ser condômino do Estado, na prática nada significa em termos de defesa do indivíduo contra o poder cada vez mais invasivo e absolutista do Estado.

Nos últimos dois séculos, todas as gerações do Ocidente foram formadas -melhor se diria,deformadas – segundo essa visão. Muito oportuno recordar, pois, os ensinamentos perenes dos grandes mestres gregos.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

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