Alê Bragion
De olhar inteiro, sem movimento e sem pressa, ainda se pode ver como e onde começa – e termina – em Piracicaba a história e a sina da Rua do Vergueiro. Rota discreta que surge quase escondida ou amparada pela fachada imensa que folclórica do antigo Hotel Beira-Rio, o passo sem paço da Vergueiro merece ser saboreado pé ante pé, sentindo-se na brisa leve do tempo o que a região por ali já foi e o que hoje (valham-nos os deuses e deusas) ainda (sob todos os riscos) é. Se há amor verdadeiro, se há apreço sem preço pelo que contam seus meio-fios, saborear e preservar a Vergueiro é um desafio a piracicabanos corações certeiros – tocados pelo amor à cidade e pela paixão que vem da região que margeia o rio.
A Vergueiro, de raro traçado oscilante e pouco torto, antecipa no peito da gente a sensação ribeirinha que sobe da Rua do Porto. Porém, não há mais nela – por vileza e ganância de sua “gente de bem” – seu ar de antiga instância, de passagem ancestral, de oratória memória a ser contada por fileiras de pequenas e médias casas de varandas breves que ladeadas por corredores discretos e úmidos da saudade que os quea conheceram (em outros idos) têm. Mesmo assim, algumas construções do antes – e que resistem ao golpe fatal do capital ao lado de novos prédios sem alma e sem graça – ainda mostram radiantes o que foi e o que é (nessa rua, oras, que foi do Vergueiro), a urbanizaçãode um tempo piracicabano já quase extinto que passageiro.
Assim, abrindo o roteiro, explode em visão no início de sua jornada, o prédio imponente – quase Meca – de nossa pública biblioteca “Ricardo Ferraz de Arruda Pinto”. Seu corpo livro, seu jardim de ludicidades, seu apontar de horizontesdescansam os olhose a mente dos que se põem a contemplar ao longe o arvoredo que não se acaba e que sombreia em oitavas graves o murmurar do Piracicaba. (E que não se acabe também a própria biblioteca – ameaçada que está por vendilhões de novos templos: iletrados desleitores da verdade de nossa cultura-cidade). Na quadra seguinte, igualmente resistindo, ergue-se à direita o antigo Lao– hoje força mística que floresce, simples e bela, entre árvores sagradas num quintal. Mais adiante, reinantes da resiliência, registre-se a existência dealgumas casinhas de teto baixo e de janelas para a rua(marca indelével de uma arquitetura que é, entre galpões e novas construções, símbolo maior de beleza em resistência).
E, dali (salvador) em diante, a Vergueiro desce por um inconsciente coletivo e onírico que jamais a esquece – e sobe-e-desce e sobe-e-desce – de leve, sem sobressaltos, exibindo em seus pontos mais altos pistas de uma Piracicaba mítica, rítmica, canção. De alguns cantos da Vergueiro há pouco se ouvia, em outras noites de lua, a seresta feita na rua que vem do Largo encarnação, do Largo ação das artes e dos amores em festa, do Largo dos Pescadores em noites de tradição. Rumores e movimento. Vento de outros sabores. “Melhor descer pela Vergueiro e tomar uma das ruas que leva direto ao rio”: prazer de estio quente, zumzum de gente-inspiração que vivia e zanzava por ali – rondando os poucos bares pacatos de suas esquinas-estação. “Melhor seguir pela Vergueiro.”Melhor seguir o coração.
Por fim, em derradeiro – porque na vida tudo termina –a Vergueiro parece querer morrer, junto à XV, na esquina. Ali sua descida é mais dolorosa, sua viagem é só de ida, metáfora da vida que finda – vivida, nostálgica, literária e (por isso) linda. Há ainda um falso quarteirão adiante, antes da fatídica Ulhoa Cintra. Mas quem se importa? Sem maldade, a porta para a Piracicaba velha, que se abre, está na Vergueiro – que leva até a Rua XV e aporta na saudade. “Melhor seguir pela Vergueiro”. Quem se importa? O que canta mais forte agora aos corações passarinheiros: o amor ou o dinheiro? Melhor passar pela Vergueiro. Melhorviver um pouco em suas paragens, às margens do rio e do tempo: construção afetiva, via pública, rua, sempre e eterno companheiro.
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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017