Adelino Francisco de Oliveira
Interessante que a primeira criança a ser vacinada em prevenção à Covid no Brasil esteja revestida de tantas representações e significados simbólicos. O pequeno Davi Seremrãmi’wê Xavante, em sua ainda plena infância, já traz as marcas de tantas resistências. Em um contexto de negacionismo explicito, de afirmação de tantos preconceitos e de violação do direito à saúde na infância, Davi é criança, é indígena, é portador de comorbidade, é migrante. Davi traz a dignidade do povo Xavante, do povo brasileiro.
Alguns caminhos certos são tecidos por linhas tortas, fazendo justiça ao ditado pular. Foi assim que pude conhecer o jovem Davi Xavante. Na dinâmica da construção da pré-campanha para disputar a prefeitura de Piracicaba, ainda em 2019, um amigo do Rio de Janeiro, Cremildo, ex-companheiro dos tempos do Seminário Menor Salvatoriano, em Conchas, aproximou-me da pesquisadora da tradição Xavante Fernanda Viegas Reichard, que é a responsável legal pelo pequeno Davi, que vive com ela em Piracicaba, pois faz tratamento de saúde.
Davi é uma criança linda, forte, livre, admirável,cheia de energia, de inventividade, de aberta curiosidade, de profunda bondade e também plena de valores culturais. A convivência com Davi Xavante é sempre uma experiência única, singular, reveladora. Não precisa ser grande observador para se perceber, quase de imediato, a explosão de potencialidades, contidas em uma criança Xavante.
Desde o início da pandemia da Covid-19, os povos originários, juntamente com as comunidades mais pobres da sociedade, foram literalmente abandonados à própria sorte, sem uma ação mais efetiva de proteção e cuidado no campo da saúde pública por parte das autoridades políticas em esfera federal. Foram muitas as denúncias, em âmbito nacional e internacional, contra o governo federal, por parte de entidades e organizações ligadas à garantida dos direitos humanos, relatando um verdadeiro genocídio contra os povos indígenas. Há uma consistente denúncia de que foram cometidos crimes contra a humanidade.
Em ricos e intensos diálogos políticos, a pesquisadora Fernanda Reichard apresentou-me o projeto “aldeias irmãs”, propondo que a cidade de Piracicaba adotasse uma aldeia indígena, mantendo profunda interação, com trocas culturais e ajuda material. Explicando o projeto “aldeias irmãs”, a pesquisadora Fernanda Reichard ressaltou que essa era uma proposta pensada primeiramente pela pesquisadora Mirian Rother. Fiquei logo fascinado pelo projeto e, após discussões e estudos de viabilidade, incorporamos o projeto “aldeias irmãs” em nosso programa de governo, quando disputamos a prefeitura de Piracicaba, na eleição de 2020. Foi maravilhoso sonhar, em conjunto com o cacique Jurandir Siridiwê Xavante – pai do jovem Davi –, a possibilidade de Piracicaba estar irmanada com o povo Xavante, da terra indígena de Pimentel Barbosa, aldeia Etenhiritipá, no Mato Grosso.
O tema da vacinação das crianças aparece como mais um triste capítulo da necropolítica, defensora de um negacionismo míope, que tenta, obstinadamente, negar a letalidade da pandemia, apesar da incontestável realidade de mais de 620 mil brasileiros mortos em decorrência direta da ausência de uma política pública nacional de imunização em massa, por meio da ampla vacinação da população. Nessa conjuntura marcada pelo negacionismo oficial, a vacinação de Davi Xavante alcança um sentido profundo, de resistência, de reconhecimento étnico-identitário e de afirmação de plena cidadania. Davi deixou de ser uma criança individual, para emergir como símbolo da identidade de todo o povo brasileiro, que reivindica o direito fundamental à saúde e afirma a dignidade da vida, em uma cultura do bem viver. O pequeno Davi é um ícone de luta e de resistência, de defesa e salvaguarda do processo civilizatório, de emancipação, de reencontro com a diversidade, com a pluralidade e com nossa humanidade.
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Adelino Francisco de Oliveira, professor no Instituto Federal, campus Piracicaba; Doutor em Filosofia e Mestre em Ciências da Religião; [email protected]; @Prof_Adelino_; professor_adelino
Divulgação
Davi, Fernanda e Adelino