Alê Bragion
Era gato e era querido. Bichano. Gaiato-gatilho, velho e sabido. Esperado na boa hora que estava – visto que os anos já lhe iam idos. Velhoso, barbichava a casa sem muito mexer de patas – somente dando de olhos-bigodes nos acontecidos dos dias. Deitado no tapete rente da porta, gatolhava a vida, filosofando no existir-sem-sentido do de todos. Vez por outra, uma mão carinhosa lhe cobria os pelos em desalinho, desajeitando o desajeitado do rabo às orelhas. E como gostava de afagos-afetos! Ronronava roncando largo, olhos gatunos fechados, unhas em retidão de tigre. Quase sempre, durante o cafuné gratuito da tarde, adormecia gatoso, asmático e lento – pois lhe pesava no esqueleto e nas pálpebras a idade-experiente que tinha.
Os de casa davam com ele como se fosse um sábio encarnado, um parente antigo ou avô perdido no antes – então voltado gato para jornada terrena nova. Para os passantes que o viam da rua, tinha o bicho um ar de preguiça divina – um deus bonachão em contemplação eterna da desgraçada raça humana. Não por menos, o bichano deitava olhares de mago velho toda vez que lhe faziam um psi psi psi em chamamento-vão. Garbo misterioso, o gato – que de todo branco o era – apenas olhava meditabundo-meditativo o afã dos desconhecidos que dele esperavam um mínimo de gatal reciprocidade. Nada. Feito um velho mestre de plagas celestes, o felino-mágico pouco se abalava de seu tapete na entrada da casa.
Gastas assim lentamente as sete vidas que o divino lhe dera, passara o gato desta para outro vida que se espera no possível. Sob desespero dos donos, o mistério da vida se completava: deixava o bicho a vida boa que tinha para ir para sempre para o céu dos gatos (que se crê que haja). Tristeza. Selada sua sorte final de felino, o luto derrubou lágrimas de cristal e lamentações soturnas. O que seria de todos naquela casa agora desgatada? Como viver sem a presença espectral do protetor fincado há muitos anos, em raiz, à porta da vida dos que ali, humanos-tristes, habitavam? E mais, e mais urgente: o que fazer com o corpo gordo e fofo do branquelo peludo que ainda não de todo havia esfriado?
Após rápida resolução, o santo concílio familiar – aos prantos – resolveu enterrar o Mago ali mesmo no jardim da casa. Terreno conhecido do ente querido, campo de flores mijadinho por ele tantas vezes, o jardim ofereceria a possibilidade de um contato imediato com todos – em lembrança – é claro. Porque, morto que estava, os poderes divinos do gatuno-gatoso pareciam agora sem efeito. E assim foi feito. Despediram-se todos, em doces choros e inconsoláveis adeuses, do velho Mago-em-bigodes. Naquele fim de tarde, uma chuvinha fina caía sobre a cidade. Em espelho, parecia até que os deuses que olham pelos gatos que vivem na terra também choravam a partida do pequeno. Para outros, a chuva era a benção dos céus a lavar o corpo do pobre. Outros ainda viam ali um aviso divino: fosse mesmo mágico o velho Mago e o veriam todos, novamente, renascido e retornado das profundas, a qualquer momento.
A noite que se seguiu após a última pá de terra foi medonha. Soluços-convulsões queriam de volta o velho Mago. Foi necessária muita conversa e muito amor entre todos para que, juntos, vencessem as primeiras horas da nova-triste vida-nova. Orações. Rezas. Pedidos. Até que o sono venceu a tristeza e fez-se a escuridão.
No dia seguinte, o grito de Münch. Aberta a porta de entrada, o gato, gatalhudo, sujo de terra e desgrenhado de pelos, ali estava – posto que disposto – deitado no tapete rente da porta, retornado, mas ainda morto. Foi um desvario só. A casa deu de joelhos no chão. O velho Mago havia ouvido o choro de todos e, num último esforço, voltou à porta da casa. Não havia outra compreensão. E todos se compadeceram de sua generosidade e poder. Penalizados que espantados, resolutos que resolvidos, aceitaram dar ao bicho o descanso-eterno-merecido – e sem lamentações ou preces de retorno. Nos finalmentes, chamaram bezedeira famosa no bairro para despachar na mística o gato voltado.
Feitas as encomendas fúnebres, o enterraram pela segunda vez no mesmo jardim. Nos olhos de todos, o agora, o imenso mistério do insodável inexplicável. Que tamanho poder havia naquele gato? Credo-em-cruz. Que aquilo era demais até para os que tanto o queriam de volta. Que Deus o acolhesse dessa vez. E só. Que assim fosse.
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À noitinha, quando a casa dormia sob nova chuva divina, apenas o cachorro do vizinho – velho amigo do Mago falecido – é que, sem entender o porquê de terem estragado seu serviço, haviam todos reenterrado o gato. Sim. Novamente. Agora era outra a vez dele. Vez nova. A de redesenterrar o velho amigo. De novo.
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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017