Vida quotidiana: um gênero literário

Armando Alexandre dos Santos

 

Na semana passada, tratamos do gênero literário e historiográfico designado como “de vida cotidiana”. Pretendo hoje continuar a tratar do assunto, como introdução para os próximos artigos, nos quais apresentarei, aos leitores desta coluna, uma resenha crítica do excelente livro “La vie quotidienne au temps d´Homère” (A vida cotidiana no tempo de Homero), de Émile Mireaux, membro do célebre  Institut de France (Paris: Librairie Hachette, 1954, 266 p.).

Li e analisei com cuidado esse livro, há muitos anos, e cheguei a traduzi-lo em boa parte, com vistas a publicá-lo no Brasil, porque na época eu trabalhava numa editora de São Paulo. Só depois de adiantado no trabalho fiquei sabendo que já tinha sido publicada, em Portugal, uma tradução da obra e desisti da ideia de fazer uma edição brasileira.

É muito ampla a bibliografia disponível sobre o conceito de vida cotidiana, ou seja, o conjunto de atividades exercidas pela generalidade das pessoas ao longo do dia (englobando residência, trabalho, modos de viver e se portar, deslocamentos e meios de transporte, hábitos de alimentação, higiene e lazer etc.). Além da perspectiva historiográfica, são numerosos os enfoques possíveis, a partir de diferentes disciplinas: sociologia, psicologia, antropologia, economia e outras mais. É, por excelência, um campo do conhecimento que requer multiplicidade de enfoques, vale dizer, é impossível estudá-lo em perspectiva unidisciplinar.

Não é um gênero fácil. O autor de uma “vida cotidiana” necessita conhecer profundamente não só a história de uma época, mas precisa de conhecimentos pluri-disciplinares muito extensos, sob pena de falhar redondamente no quadro que traçar.

Aos apreciadores do gênero, não posso deixar de recomendar que leiam quatro livrinhos maravilhosos, escritos pelo saudoso amigo Hernâni Donato, com o título “O cotidiano brasileiro” e os subtítulos “no século XVI”, “no século XVII”, “no século XVIII” e “no século XIX”. Foram todos lançados pela Melhoramentos, editora da qual Hernâni foi diretor. São livrinhos curtos, mas densos, extremamente bem documentados e bem redigidos, verdadeiras obras-primas do gênero.

Foi a editora parisiense Hachette que iniciou a publicação, em 1938, de uma série de livros que, no total, foram mais de 200, constituindo a “Coleção Vida Cotidiana”, que fez enorme sucesso e criou uma verdadeira “moda”, que foi seguida por outras editoras não só na França, mas em todo o mundo- inclusive pela paulistana Melhoramentos.

A Hachette, fundada no ano de 1826 por Louis Hachette, sempre se destacou por seu caráter inovador. Ainda no século XIX, aproveitando-se da expansão das redes ferroviárias, iniciou a venda de livros em estações de trem, chegando a possuir, em 1896, 1200 pontos de venda – as Bibliothèques de gare– em toda a França. Lançou numerosas séries de livros de grande vendagem, como as coleções “La vie heureuse”, “Le Livre de poche” e, mais tarde, “La Vie quotidienne”.  Durante certo período, praticamente monopolizou os livros didáticos e os guias de viagem franceses. Sucessivamente, foi adquirindo e incorporando dezenas de outras casas editoras e expandiu sua área de atuação para outros países, tornando-se uma gigantesca multinacional. Atualmente ainda é a maior rede distribuidora de livros na França e em todos os países francófonos. Desde 2009, 51% de suas ações passaram para o controle de chineses.

É precisamente um dos mais bem sucedidos lançamentos da Coleção Vida Cotidiana, da Hachete, que veremos na próxima semana.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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