Alê Bragion
Ouvir cidade. Ouvir as ruas, seus passos e saltos. Ouvir seus carros que agora passam em arroubos e sobressaltos – mas que, no tempo em que tudo era, ainda passavam mansinhos que deleitosos. Ouvir os pregões nas vias dos anos que se foram indo, como farelos de biju numa cesta de vime: “Olha o Bijuuu, olha o bijuuu”. Ouvir os auto-falantes dos automóveis quase autômatos berrando a seiva verde-amarela da matéria-prima com que se faziam e se fazem quitutes imaginários e imaginados: o mais puro creme do milho verde, de uma cidade que hoje nem sequer milho tem. “Pamonhas, pamonhas, pamonhas, pamonhas de Piracicaba, venha provar essa delícia, temos curau e pamonhas. Pamonhas, pamonhas, pamonhas, pamonhas de Piracicaba”. Para que milharais? Onde o som do vento nas espigas? “Venha provar, minha senhora, é uma delícia”. Que Bilac ouça as estrelas sem beleza dos parnasianos aguados. Nós ouvimos a cidade, “pamonhas, pamonhas, pamonhas”.
Nós ouvimos os sinos das igrejas, o sino do Carmelo – belo-belo – a provocar polêmicas cosmopolitanas e anacrônicas, apartadas da sua história sonora local. Pobre sino do Carmelo, belo-belo-belo, que bata sempre a nos relembrar que a história também é feita de sons e incômodos – por que onde muitos ouvem problemas, outros tantos ouvem beleza: belo-belo-belo. E quantos não poucos se deleitam ainda canoros com o espanto de todo mal ao ouvirem o badalar dos sinos da catedral. Catedral bélica na praça de sonhos, na praça dos desejos de grandeza. Catedral que é marco e certeza de uma cidade-outra-civilização. Batem-lhes os sinos no compasso da vida cingida entre pombas e ambulantes, entre pedestres-passantes que caminham interioranos para dentro de coração. Quem nunca ouviu as conversas da praça da catedral – as do tempo corrido e as do de agora – não conhece a vida sonora que ecoa discreta no boca a boca ao pé do ouvido, entre um café e outro, na praça dos sentidos. Catedral, que se não é ebúrnea ou espectral, é – em última essência – sonora, sonhada, espacial.
Espaço-cidade de acordes complexos – espaçosidade musical, ficcional, vocabular e melódica. Cantam seus rios, cidade, os tambores do maracatu de baque caipira. Louvam sua terra o toque do tambu – e a dança de ancestralidade infinda, impregnada, chocando-se graciosa à vida no batuque de umbigada. Soam-lhe os pés em tons rochosos, rachados e terrosos nos terreiros incrustados em sacros templos sigilosos. Cantam-lhe as modas, as folias de reis em sons festivos que divinos. Cantam-lhe ainda a viola de ouro, as histórias puxadas ao gole e no fogo das cachaças. Cantam-lhe sempre, sem disfarces, o samba de lenço e o cururu – quando aguçamos os ouvidos e lhe ouvimos, ó cidade. Por outros cantos, descobrimos outros encantos que cortam o tempo e duelam versos proféticos e periféricos, feitos de carne e vontade. Pois em ti, ó cidade, ouvem-se também o pop, o samba, o jazz, o hip-hop – “peixe, peixe, peixe, ô… peixeiroooo” – e orquestras a cem por um.
Nas rádios das tuas veias, a canção candente e cadenciada hoje silenciada dos teus impulsos ondulatórios. O som das estáticas a soar solene sobre as cabeças no campo do XV – orelhas coladas nos chiados verbais em ondas curtas. O grito de gol. A lamentação. O uhuuuu vibrando na onda criada na arquibancada. Aaahhhhh! O choro de quem te segue e quem te percebe para além dos silêncios propositais que encobrem teus defeitos. Úuuuu! A pouca água a raspar sola em suas pedras, em seu leito sempre seco, de seu rio grandioso e empobrecido. A bulha das festas do outro lado do seco – do outro lado do que em tempos foi um rio caudaloso e melódico. Óoooo! A harmonia das aves que arrulham sobre a mata chacalhosa – a brisa rara e gostosa que vem de terras vizinhas. Aaaaai!
Ouvir cidade – oras direis. Mas não perdemos o senso e tanto. Nos achamos, mesmo quando abandonados, nos achamos. Nos achamos sempre no “r” da força atrás da “pórrta”, nas “hóooora” tarde da noite, quando sonhá e escutá seus sons, sentidos, nos reforça e enche o espírito e os ouvidos.
Ouvir cidade. E o que mais “vos direis”, no entanto? O que mais sabemos como são os que hoje nos apartam de ti, Piracicaba. Fronhas da desilusão que nos sufoca o choro vendo-te morrer palmo a palmo na bancarrota dos vendilhões do templo que és. E eles? Os vendilhões? Quem são? Ouve a ti mesmo cidade: “pamonhas, pamonhas, pamonhas.”
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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017