Armando Alexandre dos Santos
Concluo hoje a tradução da entrevista concedida pelo respeitado historiador francês Claude Quétel, autor do livro “Crois ou meurs!” (crê ou morre), publicado em 2019 pela editora parisiense Tallandier/Perrin, e autor também de numerosas outras obras sobre a história da França. Falando ao repórter Guillaume Bonnet, da revista “France Catholique” (ediçao de 30/8/2019), o autor contestou com veemência a visão oficial elogiosa da Revolução Francesa, e apontou que, contrariamente ao que se apregoa, a participação popular foi praticamente nula ao longo de todo o processo revolucionário. Foi uma minoria articulada que, na realidade, promoveu a Revolução. Na sequência, a entrevista passou a abordar o contraponto da Revolução, que foi a contra rrevolução da Vendeia:
“GuillaumeBonnet: A guerra na Vendeia teria sido, pelo contrário, uma revolta popular?
Claude Quétel: Se quisermos falar de atuação popular durante a Revolução, tal se deu precisamente durante a guerra da Vendeia. Os abusos da Revolução foram tais que acabaram por provocar um levante geral. Terá sido a totalidade do povo vendeano que recusou a Revolução? Sou tendente a responder que sim. A Convenção, por sinal, temeu tanto a dimensão popular dessa recusa que desencadeou uma verdadeira guerra, considerada por muitos como um genocídio, no sentido jurídico atual do termo. Genocídio ou não, foi pavoroso o resultado! A Revolução é uma sucessão de monstruosidades. O uso massivo da guilhotina, a Vendeia e as intermináveis guerras produziram cerca de meio milhão de mortes. E tudo para afinal chegar desembocar em Bonaparte e nos dois milhões de mortos das guerras do Império. Na Revolução, as ideias parecem bonitas, mas os fatos são horríveis.
GB: O Sr.afirma que a Revolução é intrinsecamente anticristã…
CQ:Sim. Contrariamente ao que afirma a historiografia “ortodoxa”, os piores malfeitos da Revolução não foram acidentais, mas foram consubstanciais a ela.Em primeiríssimo lugar, as perseguições anticristãs. Foram conduzidas de maneira conjuntural, porque a religião era considerada a melhor aliada do despotismo monárquico. Mas também foram conduzidas de modo estrutural, porque as revoluções totalitárias recusam por princípio toda ordem transcendente, mas somente aceitam a dos princípios que fundamentam uma nova imanência. Os mais clericais, comoFouché, tornam-se por vezes os mais ferozes anticristãos. As manifestações descristianizadoras foram múltiplas, desde a adoção de um novo calendário até à horrível profanação das sepulturas reais de Saint-Denis – sem falar nas paródias sacrílegas realizadas na Catedral de Notre-Dame.
GB:Que pensar da figura de Robespierre?
CQ:Robespierre, como dizia Mirabeau, “é perigoso porque acredita no que diz”. Frase magnífica! Ele crê como homem nos direitos do homem, virtuoso mas teórico e descolado da realidade. Foi essa, aliás, a crítica principal que fez, lá pelos anos 1900, o historiador e sociólogo Augustin Cochin à Revolução considerada no seu conjunto. Robespierre corresponde precisamente ao tipo do ideólogo perigoso. Foi o primeiro a querer fazer avançar a Revolução a qualquer preço. Quando Danton lhe propôs de reduzir a velocidade do movimento, recusou. E, do ponto de vista da dinâmica revolucionária, tinha razão: uma revolução que diminui sua velocidade acaba parando. Danton, diga-se de passagem, também não era muito melhor do que Robespierre; foi ele, e não Robespierre, o inventor do Tribunal Revolucionário, que justificou com uma frase famosa: “Sejamos terríveis nós, para dispensar o povo de o ser”.
GB:As atuais divisões da França têm origem na Revolução?
CQ:Essa é a principal crítica que lhe faço. Antes de 1789, existia um povo francês, colocado sob a autoridade de um rei. O sistema estava longe de ser perfeito; a monarquia absolutista era um navio que já fazia água e não teria longa sobrevida; mas poderia se ter modernizado, como na Inglaterra, e se teria transformado numa monarquia constitucional. Mas, depois de consumada a Revolução, o povo francês estava para sempre dividido em duas partes. Essa divisão foi gritante quando se celebrou o bicentenário da Revolução, em 1989. Mitterrand bem que tentou reunir toda a França em torno da Revolução, mas fracassou rotundamente. Os que celebram a Revolução como mãe dos direitos do homem e da República, de um lado, e os que se recusam a ver nela um acontecimento fundador e, menos ainda redentor, de outro lado – permanecem irreconciliáveis. A Revolução foi um horror, nada inventou e nos causou um retrocesso em todas as áreas. Mas, sobretudo, ela nos dividiu. Todos os grandes povos se unem em torno de uma história comum, menos os franceses. Por quê? Porque a Revolução os separou.
GB:Segundo o Sr., a festa do 14 de julho é a prova mais evidente disso…
CQ: Nós somos o único país do mundo a ter uma festa nacional em data imprecisa. A lei de 6 de julho de 1880, que permanece em vigor, faz referência ao 14 de julho de 1789, data da tomada da Bastilha, ou se refere ao 14 de julho de 1790, festa da Federação? Dois catorzes de julho pelo preço de um! Quem é de esquerda, festeja o de 1789. Os de direita moderada, festejam o de 1790. Sem contar os que não aceitam nenhuma dessas duas datas!”
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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.