Fim do primeiro tempo

Alê Bragion

 

Quarenta e seis. Oficialmente hoje, onze de novembro (cabalística data do “onze do onze”), adentro à protocolar prorrogação do que (espero) ser apenas o fim do meu primeiro tempo. Por isso,apesar dos privilégios dos quais me envergonho e que a “Fortuna” (o destino, em latim) imputou a mim – como o de ser branco numa sociedade racista, como o de ter condições de comer e estudar quando muitos morrem à míngua, como o de ter onde morar com distinta dignidade enquanto uma imensa maioria tem, quando muito, um metro quadrado de terra ocupada no qual se erguem barracos de papelão sobre esgoto a céu aberto –, talvez eu possa dizer que (e apesar de) chegar aos quarenta e seis anos não deixa de ter, de alguma forma, um gosto estranho – não ruim, mas estranho.

Mesmo que tentando me distanciardos melodramas de quem enfrenta os astros no inferno astral em rotas de colisão devido à chegada da data natalícia, não posso deixar de reconhecer – e já venho escrevendo sobre isso há algum tempo – que somos, sim (ao menos até aqui), sobreviventes. Num poema-crônica de um livro em fase final (ou seria melhor dizer em fase terminal?) e que devo (será?) publicar no próximo ano, escrevi (olha o spoiler): “diante da morte,/de quem todos correm,/ viver é um sorteio em que o vencedor,/sem outro meio,/ tem de enterrar os que morrem.” Perdão.Não tem jeito. Meu sangue melancólico-maternoborbulha de reflexões metafísicas (provavelmente) inapropriadas para festividades de aniversário. Eu sei. O que fazer?

Não posso negarque celebrar anos quando mais de seiscentas e sete mil pessoas(só no Brasil) morreram vitimadas por um vírus repentino e por líderes cretinos – que, desdenhando das gentes, decretaramsuanecropolítica (na qual não faltaram – além de tudo – ironias fascistas contra tudo e contra todos) – não é tarefa fácil para quem se recusa a normalizar a alienação. (E eu me recuso). Por isso, não celebro a minha salvação enterrando minha tristeza e indignação junto com os que se foram (sem vacinas, sem ar, sem condição). Não. Falta-me, hoje, Bocage. Sobra-me, agora, Nietzsche – a me lembrar “quanto temor e quanto sangue há por trás de todas as coisas”.

Ainda, como celebrar mais um ano quando afundamos nosso cotidiano numa das mais funestas fases da vida política nacional? Como receber cumprimentos festivos dos que apoiam – sob toda a pena – aqueles que zombam do humano com os seus “e daí, não sou coveiro” e outras boçalidades? Como ser feliz vendo a destruição da educação e suas instituições, da saúde, da cultura? Como partir um bolo com alegria sabendoda fila em romaria que agoracaminha para comprar ossos país afora –(é de sangue e de pó o destino que não é mais de um só?). Vou (vamos) festejar a hipocrisia? Pior.Lembremos que em breve o natal vem aí, com suas luzes falsas – (em tempos de antivacinas, a crença no Bom Velhinho deve estar em alta) – exultemos!

O findar do meu primeiro tempo, contudo, me põe também a entender que – ao que pese o momento –estar no jogo é, por que não, na tabuada das contas, motivo deagradecimento e reflexão. Afinal, certamente no segundo tempo que se abre a estatística anuncia que será mais difícil vencer a etapa complementar sem pedir substituição a qualquer momento – e, talvez, haja aí um (depressivo) alento. Em todo caso,o jogo segue – é fato. E jogá-lo faz parte do objetivo de estar em campo e do campeonato – pois o jogo (por algum motivo ou por vários) não pode parar. E (acredito) há tanto ainda por jogar, tanto ainda por mudar (por dentro e por fora, e no exterior das coisas tidas e idas), que sempre é bom, mesmo já passados os primeiros quarenta e cinco, seguir em aquecimento.

Assim, e saindo um pouco da metáfora futebolística adotada com estratégia linguística (e meramente literária, é evidente), buscono verbo “mudar” – acima sorrateiramente inserido – o mote para a conclusão desta crônica-testemunho de aniversário o seu tanto sentida. Mudar. Ou: “amar e mudar as coisas” – como cantou Belchior – esse talvez seja o motivo (maior e melhor) da existência da longa partida a que chamamos vida. Amar e mudar as coisas, sim – ao que pesem os anos e os desenganos– talvez seja uma meta, um fim.

Por fim, e enquanto o técnico não nos chama para o banco, sigo, sigamos – levando na escrita e no coração a presença dos que já, por aqui, foram encerrando a carreira ao longo dos anos. Sim. Sigamos.E que venha o segundo tempo!

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017

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