Armando Alexandre dos Santos
Costumo escrever semanalmente dois artigos para a imprensa piracicabana, este da Tribuna e outro para o Jornal de Piracicaba. Na Tribuna, nos últimos anos, já são quase 500 as minhas colaborações. Para o JP, a colaboração é bem mais recente, mas já passa de 100 o número de artigos publicados.
Confesso que, às vezes, dá muita preguiça de escrever… É o que acontece hoje. Em vez de escrever um texto meu, vou traduzir alguns trechos de uma entrevista publicada na revista “France Catholique”, de 30/8/2019. É matéria de grande interesse, que tem a vantagem de dar continuidade aos meus dois artigos anteriores, sobre a trilogia revolucionária “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Afirmei, no primeiro desses artigos, que na França atual a Revolução de 1789 está muito longe de ser unanimemente aceita, sendo muito considerável o número dos seus opositores. Vou hoje apresentar um exemplo de opositor atual dessa Revolução.
No livro “Crois ou meurs!” (crê ou morre), o historiador Claude Quétel, autor de numerosos livros sobre a história da França e ex-diretor científico do Memorial de Caen, contesta com veemência a visão oficial elogiosa e quase hagiográfica da Revolução Francesa. Estudou seriamente os acontecimentos e, baseado em sólida pesquisa, dispôs-se com coragem a “chutar o formigueiro” dos historiadores “ortodoxos”. Seu livro, editado em 2019 pela editora Tallandier/Perrin, está fazendo grande sucesso na França. A seguir, alguns trechos da entrevista que deu ao jornalista Guillaume Bonnet:
“Guillaume Bonnet: A Revolução Francesa, no seu modo de entender, não passa de um mito?
Claude Quétel: Sim, é o grande mito fundador da República. Todas as nações fundamentam suas histórias nacionais em mitos de origem, bem perceptíveis e identificáveis. Mas para os que não são capazes de fazer isso, a história da França de vários pontos de vista principiou em 1789. Ora, isso é um mito que artificialmente refunda a história da França. Essa refundação é a mãe de uma República francesa que somente iria nascer 80 anos depois, sem embargo de seus erros e de seu horror. Então, foi a Revolução que fundou a história da França? Com certeza, não. Vou mais longe: direi que ela contrafundou essa história.
GB: Qual o papel da morte de Luís XVI nesse mito fundador?
CQ: Luís XVI foi apenas uma vítima, de si sem grande relevância.Robespierre, Saint-Just e todos os jacobinos tinham se dado conta disso. Mas era o rei; havia que eliminá-lo. Os turiferários da Revolução apresentam com frequência sua execução como um episódio infeliz. Mas ela não foi um mero acidente de percurso; pelo contrário, ela se insere na pura lógica revolucionária. Simbolicamente, é matando o pai que a gente se regenera. Politicamente, isso impedia toda volta atrás. Robespierre foi muito claro: não se tratava de julgar Luís XVI, mas de condená-loe dar-lhe fim.
GB: A morte de Luís XVI no cadafalso ainda pode ser considerada admirável?
CQ: A coragem com que ele se portou diante da guilhotina está fora de discussão. Não lhe faltavam inteligência nem coragem, sua principal falha foi a fraqueza como governante. Exercer o poder exige saber usar quando necessária a violência; ora, o rei se proibia a si mesmo derramar o sangue dos súditos, e o resultado foram as torrentes de sangue que a Revolução produziu. No princípio dos Estados Gerais. Luís XVI tinha total liberdade para eliminar os fautores da desordem. Quando os deputados do Terceiro Estado, ultrapassando suas atribuições, quiseram se constituir em Assembleia Nacional, bastaria dissolver os Estados Gerais, mas o rei não fez isso. A partir da falta de reação inicial, a escalada revolucionária se tornou inevitável.
GB: De que modo os germes do Terror já estavam presentes desde 1789?
CQ: Eles já podiam ser notados no veneno do filosofismo iluminista. As utopias da época – como a bondade natural do homem, cantada por Rousseau, a teoria do contrato social e o igualitarismo – foram consideradas, na Corte francesa, como simpáticas divagações de salão. A polícia do Antigo Regime nem se interessou por elas. Em 1789, aqueles que mais tarde se transformariam em jacobinos foram os portadores dessa mensagem iluminista. No entanto, tais homens (advogados, membros do ministério público, jornalistas) não passavam de uma minoria, pois a França da época contava com 95% de camponeses ou artesãos. Onde é que estava o povo, tão celebrado pelos revolucionários? Em nenhum lugar!
GB: As taxas de abstenção eleitorais indicam essa não-representatividade?
CQ: As fontes quantitativas mostram, de fato, que ao longo de toda a Revolução foram enormes as taxas de abstenção. Dos 50 mil eleitores de Paris que poderiam ter votado para os Estados Gerais, apenas 11.706 o fizeram. E essa eleição foi reputada como tendo eletrizado todo o reino e particularmentea capital! Não se esqueça, de passagem, que as mulheres foram consideradas pela Revolução como perpétuas menores de idade, do ponto de vista político. As grandes questões filosóficas e políticas deixaram o povo indiferente. Se a Revolução começou em 1789, foi porque o pão jamais estivera tão caro, e isso exasperou o povo miúdo das cidades. A Revolução foi desencadeada pela carestia, mas o povo jamais foi ator dela.” (conclusão na próxima semana)
___
Armando Alexandre dos Santos, Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.