Liberdade, Igualdade, Fraternidade: uma trilogia polivalente

Armando Alexandre dos Santos

 

Apontei, no artigo da última semana, o caráter extremamente ambíguo (e também perigoso) da famosa trilogia adotada como lema inspirador da Revolução Francesa e dos movimentos políticos e ideológicos que, na esteira da mesma Revolução, se vem manifestando nos últimos dois séculos. Essas três palavras tinham, na utilização que delas faziam os primeiros revolucionários, um sentido bem diverso do que geralmente entendemos nós, hoje em dia.Era um sentido amplo, ambíguo, aplicável a seu bel-prazer, conforme suas conveniências políticas e ideológicas. Essa mesma ambiguidade, essa mesma multiplicidade de sentidos, continua ainda hoje sendo utilizado com a mesma latitude.

Curiosamente, esse lema é tão amplo e de contornos tão pouco definidos que serve para todas as situações…

Ditadores de direita e de esquerda o utilizam à vontade, sem o menor constrangimento. Políticos também o usam com a maior naturalidade. E quanto mais demagogo, com tanto mais facilidade o usa.Quando fui pesquisar a utilização desse lema nos últimos 10 anos, encontrei-o usado por Fidel Castro, Hugo Chávez, Lula, Kirchner e incontáveis outros.

Seguem alguns exemplos, entre muitos outros.

Falando em Portugal, no dia 18-10-1998, Fidel Castro assim se exprimiu:“Esdecir que todos estamos acercándonoshacia una posibilidad de justicia, y nosotros vamos evolucionando no hacia cosas simples, sencillas o aparentes, vamos evolucionando hacia cosas serias en todos los terrenos, enel terreno teórico, enel terreno práctico y enel terreno económico, pero siempre pensando en una cosa: enun futuro de justicia, sinlocual no podríasostenerse este mundo, y enun futuro de hermandad, de fraternidad. Esafraternidad de que tanto se hablócuando la Revolución Francesa: libertad, igualdad y fraternidad, y sinceramente de lastres no quedóprácticamenteninguna. Estamos luchando todavía por losideales de la Revolución Francesa enlostiemposactuales que sontiempos de hablar de socialismo, pero estamos optimistas” (texto extraído do site oficial do governo cubano, em .http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1998 acesso a 22-2-2010.) Creio ser desnecessária a tradução do castelhano, pois o público brasileiro culto entende, sem dificuldade, textos nesse idioma.

Para o já falecido ditador cubano, pois, que se apresentava como lutador pelos ideais da Revolução Francesa, somente com a justiça futura que ele dizia esperar, haverá, também futuramente, uma irmandade, uma fraternidade. Isso explica seu governo tão pouco fraterno e tão pouco liberal…

Numa outra revista cubana, assim escreveu um comentador, de nome José Steinsleger, segundo o qual o século XX será, no futuro, denominado “o século de Fidel Castro”:“Ejemplo antes que modelo, laexperiencia cubana indica que hacer la revolución es difícil, pero factible. Acontecimiento caótico en sus inicios, es curioso que la revoluciónseaelhecho conservador por excelencia. Caótico porque, al empezar, sus efectos se disparanenmúltiplesdirecciones. Conservador porque sus idealesbuscan preservar los valores que consagró la GranRevolución: libertad, igualdad, fraternidad.” (El siglo de Fidel Castro, Por José Steinsleger, Febrero 28, 2008 – Tricontinental número 158, La Habana, Cuba, 2004).

Apregoar o sonoro lema não é privativo dos ditadores de esquerda. Também aos de direita ele pode servir. Veja-se, por exemplo, o curioso exemplo a seguir. Traduzo do francês:

“Na madrugada de 18 de julho de 1936 o General Franco, Comandante militar nas Canárias, adere ao Alzamiento (levante) contra o governo de Madri, ocorrido na tarde do dia anterior.“Às 5h15 a Rádio-Tenerife difunde uma mensagem importante, escrita por Franco, indicando as razões do levante que será “uma guerra sem tréguas aos exploradores da política, àqueles que enganam o trabalhador honesto, aos estrangeiros e partidários dos estrangeiros que trabalham, aberta ou ocultamente, para destruir a Espanha”. E promete justiça e igualdade diante da lei; liberdade e fraternidade sem licenciosidade nem tirania; trabalho para todos; justiça social e distribuição equitativa e progressiva das riquezas sem abalar ou pôr em perigo a economia espanhola. Esse texto, que será conhecido como Manifiesto de Las Palmas, conclui com a divisa da Revolução Francesa, com a ordem alterada: Fraternité, Égalité, Liberté.” (André Brissaud, “Franco devientle ‘Caudillo'”, Historia Hors-série 22, set.1971, p. 48)

Vemos, assim, que a trilogia serve para tudo e para todos… A mesma ambiguidade, a mesma polivalência, a mesma comodidade para ser aplicada a contextos muito diferentes havia em 1789 e continua havendo hoje. É uma trilogia ambígua, que serve para acobertar crimes políticos dos mais variados tipos.

Eu poderia mostrar, ainda, que existe uma contradição interna na trilogia, por onde ela, além de ambígua e acobertadora de crimes, é contraditória e utópica. Poderia também mostrar que esse caráter contraditório e utópico é reconhecido por alguns autores marxistas e neo-marxistas, que, no entanto, esperam que numa futura evolução do gênero humano sua natureza seja tão modificada que os próprios limites da utopia sejam superados. Mas isso seria estender demasiado este texto.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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