Uma trilogia ambígua e perigosa

Armando Alexandre dos Santos

 

A trilogia “liberdade, igualdade e fraternidade”, adotada como programa político pela Revolução Francesa, foi inscrita nas armas oficiais da França republicana. Até hoje a adotam como lema inspirador todos os que, de uma forma ou de outra, se consideram herdeiros da mesma Revolução. E, contrariamente ao que se pensa, a Revolução Francesa está muito longe de constituir unanimidade na França e ainda hoje é contestada e criticada por muitos franceses, que rejeitam o lema, como também rejeitam a Marselhesa, não a admitindo como hino nacional.

Se analisarmos a trilogia no seu conjunto, como um todo, constituindo um programa de vida e de organização da sociedade, veremos que se trata de um lema, acima de tudo ambíguo. E também perigoso. Sem negar que cada um dos seus três elementos, isoladamente considerados, comporta, ou pelo menos pode comportar um sentido favorável, os três, tomados conjuntamente, embutem uma perigosa utopia -porque é impossível impor a igualdade entre os homens sem cercear sua liberdade, como também é impossível lhes garantir a plena liberdade, sem que daí decorram desigualdades.

O lema “liberté, egalité, fraternité” foi, pela primeira vez, usado por Maximilien de Robespierre, o famoso e sanguinário líder revolucionário, num discurso que proferiu na Assembleia Nacional Constituinte em 5 de dezembro de 1790. Quando se tratava da constituição da Guarda Nacional, discutia-se se todos os cidadãos deviam ser recrutados para ela, ou se o critério de recrutamento devia ser censitário, ou seja, somente os mais ricos deveriam ser convocados.Robespierre defendia que todos, ricos e pobres, deviam ser convocados em armas para defender as ideias e as conquistas revolucionárias.

Note-se que até então, tradicionalmente e desde a Idade Média, sempre se entendeu que o exercício militar era privativo da nobreza. Os nobres não pagavam impostos em dinheiro, mas o pagavam em sangue, tinham o dever de lutar. Era o famoso “impôtdusang”. O plebeu pagava imposto, mas não podia ser convocado para servir militarmente a não ser quando sua própria localidade era invadida; somente nesse caso específico tinha obrigação de ajudar na defesa.Havia, no Antigo Regime, uma distribuição equilibrada de direitos e deveres, fundada na antiga sociedade de ordens, vinda da Idade Média e vaguissimamente inspirada na distribuição de funções da República de Platão.

Com a Revolução Francesa, todos ficaram iguais. Paradoxalmente, a Revolução, pregando a igualdade, começou por tirar do povo um direito e lhe impor um dever: tirou dele o direito de ser defendido pela nobreza, e lhe impôs o dever de lutar e morrer pela nação.Em resumo, a Revolução fez com que os plebeus continuassem a pagar o imposto em dinheiro e passassem a pagar também o do sangue…

Transcrevo, a respeito, trecho de um interessante artigo de dois juristas espanhóis, Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez:“Note-se que a fraternidade significou um ideal de emancipação que foi parte do programa político de Robespierre, autor da divisa `liberdade, igualdade, fraternidade´, que, em seu famoso discurso de 5 de dezembro de 1790, defendendo os direitos do homem e do cidadão contra o sistema censitário que pretendia aplicar-se à Guarda Nacional, apareceu por vez primeira na história universal da humanidade. No projeto de lei alternativo com que Robespierre concluía seu discurso, se determinava que todos os cidadãos maiores de 18 anos – e não somente os ricos – seriam, de direito, inscritos na Guarda Nacional de sua comuna; que esses guardas nacionais seriam as únicas forças armadas empregadas no interior, e não o exército herdado do velho regime; que, em caso de agressão exterior, competiria aos cidadãos em armas, e somente a eles, o defender-se. E que, finalmente, levariam sobre o peito e em seus estandartes estas palavras: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O deputado Robespierre, que vinha lutando sozinho desde há alguns meses contra a distinção, aprovada em câmara, entre `cidadãos ativos´ (capazes de pagar um censo) e `cidadãos passivos´ (pobres), voltava agora à carga, e nada menos que em um ponto politicamente tão sensível como o caráter de classe da futura Guarda Nacional.” (“Fraternidade e a Boa Sociedade”, www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/artigos/politica)

Sinceramente, não entendo como se pode falar em liberdade, em fraternidade e em igualdade no contexto da Revolução Francesa. Como falar em Liberdade numa época em que, aberrando de toda a norma jurídica e de todo o bom senso, se criou a famosa LoidesSuspects (Lei dos suspeitos), segundo a qual bastava alguém ser acusado de ser contrarrevolucionário para tornar-se suspeito de traição contra o povo francês; e bastava tornar-se suspeito para ser condenado à morte?A prova do “crime” era considerada dispensável. Bastava haver uma suspeição e já a cabeça rolava.

Como falar em Fraternidade com tantas dezenas de milhares de mortos na guilhotina, após julgamentos sumaríssimos, e com a população da Vendeia literalmente massacrada num genocídio pavoroso? Michelet escreveu, com razão, que a Revolução Francesa foi um rio de sangue que dividiu a França em duas partes e continuará a dividi-la para todo o sempre, pois a ferida que abriu jamais se cicatrizará.

E como falar em igualdade se a própria Revolução Francesa manteve a escravidão no Haiti e negou, aos negros haitianos, o direito de voto que, no entanto, considerava direito fundamental de todo homem?

Continuaremos o assunto no próximo artigo, mostrando como a trilogia da Revolução Francesa é tão vaga e polivalente que pode ser (e foi) utilizada, “a gosto do freguês”, por ditadores e demagogos, tanto de esquerda como de direita.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

 

 

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