Alê Bragion
Ai de mim! Ai de mim, Piracicaba! Ai de mim, Noiva da Colina, tantas vezes traída, tantas vezes enganada. Onde o pulsar de tua gente, senão no ritmo rente batido a pino na proa dos barcos em tardes de derrubada das Festas do Divino? Ai de mim! Ai de mim! Onde a sua alma mais crua e mais pura do que nas procissões religiosas – hoje quase esquecidas – que ainda há pouco lhe adornavam as ruas? Onde a tua reza fiel, cheia de fé e dor, descendo em cortejo pelas ruas Boa Morte e Governador? Onde aquela cobra imensa, feita de gente devota, a desfilar contente pela janela crente adornada em toalhas de tricô? Um vaso de flor te recebia, uma vela a passagem te iluminava quando descias à praça central carregada nos andores do nosso amor. Ai de mim, minha Noiva traída! Ai de mim, cidade querida! Quem te vendeu? Quem te enganou? Quem trocou teu sonho de imensidão pela ilusão da riqueza de um casamento arranjado com os poderosos do rincão?
A tua voz real não soa a ferro e metal, não se anuncia no ronco de um motor. Não. A tua voz, cidade, de verdade, era o encanto de quem sempre te cantou. A tua voz era a da noite, a dos cururueiros e seresteiros – Cobrinha, Coimbrão, Pedro Alexandrino, Bolão. A tua voz, ó cidade amada, era a voz da tua gente simples, até engraçada, que força o “r” sem saber da poesia falada que constrói em cada “porta”, “porteira” e “portão.” Ai de mim, Noiva querida! Ai de mim, Noiva amada. Que a tua voz era feita da música entoada por gente valente que te cantava contente – mesmo sabendo que, iludida, tu já mostravas que não sabias amar como antes. Agora tu és social, tu és elegante e arrumada, e move-se a galope – querendo ser metrópole. Hoje, frequentas caríssimos concertos ao lado de pessoas semi-engravatadas que, do que ouvem, não entendem quase nada. Hoje, a tua voz sonora e concreta passou a ser essa, dominada e triste – canto enlatado que obedece a plutocratas, a aristocratas cantores estrangeiros. A Vox Demo, a voz do teu povo, parece que se apartou de ti entre tantas agora assumidas. Ai de mim, Noiva iludida. Ai de mim, Piracicaba!
Onde estão as tuas flores e teus encantos senão encaixotados por grandes gabinetes? Onde pode, sossegada, a sua gente beber o néctar sagrado de tua cana – pura, com limão ou abacaxi? Para onde foram, por exemplo, tantos e tantos garapeiros que víamos aos montes pelos mais variados bairros da cidade? Por onde andam seus filhos que estavam rindo, alegres, descontraídos? Estão aqui e ali convertidos em sérios vendedores autorizados, em empregados sacrificados, em executivos descolados que habitam poderosas instalações – multinacionais, megastores, hipermercados. Onde a poesia de seu rio, agora magro e coberto de espumas e pontes – “para que tantas pontes, meu Deus,” diria eu, parodiando do Drummond, “porém meus olhos não dizem nada.” Onde estão seus blocos de rua, seu carnaval, sua arte livre, espontânea e popular? Seu clube de Regatas, seus cinemas, seus teatros famosos? Perdemos a poesia que nos caracterizava? Perdemos a segurança que nos entusiasmava a deitar cadeiras nas calçadas ao cair da tarde – enquanto, jogando conversa fora, tomávamos “a fresca?” Ai de mim, Piracicaba querida! Ai de mim, Piracicaba perdida entre contratos falaciosos. Ninguém compreende a grande dor que sente um filho teu que, a suspirar por ti, te vê hoje tão (in)diferente, tão moderninha e fora de tua raia. Ai, Piracicaba, hoje és Noiva de minissaia.
Mas há esperança no ar? Há o saudosismo de outrora a motivar seus filhos a desejar um eterno retorno ao seio quente da mãe-cidade? Há a energia de encontros a nos dizerem que é possível, a nos mostrarem que juntos somos mais fortes e que, um dia, poderemos te ver renascer e te sentir novamente nossa, inteiramente nossa, ó cidade amada? Há no horizonte o brilho de novos dias a nos te trazerem de volta? Esperemos. Esperemos e saudemos a ti. Saudemos a tua memória, cidade querida. Guardemos urgentemente o que sobrou do teu legado, de tua essência. E que, mesmo impossíveis, nossos votos sejam de que em ti não mandem mais os poderosos. Que sobre ti não haja mais donos, mais nada. Vibremos apenas os sentimentos calorosos de quem realmente só quer a ti, de tua gente que te vive e trabalha, “que faz versos, protesta”, tua gente amada.
Piracicaba.
Saudades de quem vive aqui.
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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017