Desprimavera

Alê Bragion

 

Chegou a primavera, mas não parece. Parece? Sobram ventos por todos os lados levantando terra e poeira que a gente nem sabe mais de onde vêm. Primavera de manhãs cinzentas, de um céu enganoso que quer ter chuva e chuva não tem. Primavera de tardes girando folhas secas pelo chão, de tardes secas girando as pessoas entre folhas feitas redemoinho de poeira pelo chão. Primavera triste de como há muito não se via – ou melhor: primavera triste e decantada, em dégradé de anos, a se fazer mais triste a cada nova sua chegada. Primavera desprimaverada.

Somos, até aqui, sobreviventes (senão me engano) – e isso pesa. Ante os mais de 600 mil mortos, sobrevivemos – ainda, ao que parece – mesmo que tortos à força do medo, da incerteza e de tantos impostos danos. E sobreviver nos dá esse peso que tira de nós qualquer tola leveza de alegria por ter sobrevivido – pois sobreviver é enterrar os que, aos nossos olhos, diariamente têm partido. Por isso, estranha herança sem beleza e sem esperança, a primavera que nos chega vem sem cor, sem flor, sem dança. Mesmo que muitos bestamente finjam que o mal terminou, que estamos armados que vacinados, não há no ar o odor da primavera. Olhe à sua volta. As pessoas estão tristes – apesar de fingirem não sentir dor.

Uma desprimavera de fome é o que vivemos, de pessoas implorando por ossos para os lamberem com a sopa rala da vida. Desprimavera de uma pátria perdida, humilhada, vendida na bancarrota danada que subjaz a alegria antes encarnada em cores vibrantes e sentidas. Desprimavera sem amor, sem água, sem energia, sem luz a iluminar a noite e fazer raiar de novo o dia. Triste desprimavera seca, carpida e queimada pelo bafo nojento e quente de quem mente, mente e mente aos olhos e ouvidos do mundo e das gentes – mas, mesmo assim, ainda toca o seu berrante conduzindo um vasto gado verde-amarelo pela estrada. Triste primavera desprimaverada, deprimida, desencantada.

Pior. Se não há primavera, dificilmente haverá verão. Sobrará o sol, sim, sobre as cabeças sem peças, sobre as peças de quebra-cabeças a serem fincada nas ruas, nas praias, nas calçadas da futura e quente estação. Mas verão, mesmo, de verdade, nada. Afinal, a escalada negativa das ilusões e seus bolores nos predestinam à falta de cores vivas de primaveras e verões a plenos amores. E como seria bom que isso não fosse verdade! Como seria bom que nada disso fosse assim e que esta crônica rasgada, predestinada a cantar um fim, estivesse de todo errada e pudesse ser desmascarada por completo, por completa, sim. Mas o dia não mente. Os olhares não mentem. As estações não mentem. A vida não mente.

Desprimavera (também) piracicabana – há tempos não víamos a cidade tão triste. O automatismo das pessoas nas ruas, o não-cantar de suas belezas e a decepção de suas certezas a cada dia que passa parece que nos arrasta para um leito sempre mais seco de um existir que sucumbe – entre derrotas e algumas pequenas vitórias diárias – à tristeza do resistir sem lume. Borrão de cidade, faltam por aqui alegrias e entusiasmos, sobram dores e verdades. Falta poesia, sobra gritaria. Faltam amor e devoção à sua cultura – sobram disputa, poder e usura. Piracicaba dos desamores – ainda é tempo de cantar seu hino antes que o destino venha e nos leve também suas referências? Piracicaba que adoro tanto, urge recuperar suas essências.

Sim. Chegou a primavera, é verdade. Mas não parece. Parece? Eita, viver tão raso! Talvez o outono não-ido se dê, finalmente, como nosso eterno ocaso.

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Alê Bragion, doutor em literatura, cronista desta Tribuna desde 2017

 

 

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