Adelino Francisco de Oliveira
Quis o destino e a história que no mesmo ano de 1921 o Brasil fosse agraciado com a natividade de duas personalidades centrais na defesa da liberdade, da democracia, da cidadania, dos direitos fundamentais e da dignidade humana. O primeiro nasceu lá na região Sul do país e assumiu ser Paulo, como nome de missão. O segundo nasceu 5 dias após, na região Nordeste, sendo Paulo seu nome de batismo. A possibilidade de serem contemporâneos no tempo histórico talvez seja a maior e mais bela homenagem que a vida pode fazer a ambos.
Da cultura latina, o nome Paulus significa pequeno. E aqui se entende quando uma palavra alcança um sentido teológico e metafórico, rompendo com os limites de qualquer literalidade. De nome Paulo foi Dom Evaristo Arns e também o mestre educador Freire. Dois monumentos humanos. A grandeza de suas trajetórias descortina-se como o mais tácito testemunho de que é possível fazer da vida um dom, um compromisso cotidiano com a causa do povo, na defesa da justiça e do direito, em uma existência demarcada por uma generosidade escancarada e pela mais profunda esperança.
Homens do livro, da ciência, do conhecimento denso e sistematizado. Mas também homens de profunda fé, verdadeiros discípulos, ousando professar um cristianismo radical e, portanto, libertador, na dinâmica de beber no próprio poço fontal do movimento de Jesus. Homens de ação, revolucionários, exemplos lapidados de que o conhecimento teórico e a fé ganham sentido em uma existência plena, incansável de trabalho, luta e serviço ao próximo, realizando o que se designa de práxis, no testemunho de que a coerência ética é sempre um caminho possível.
Penso que tenha conhecido Paulo Freire primeiro, não de maneira teórica. Fui ler sua obra já nos tempos da filosofia, quando também passei a acompanhar mais de perto a força libertadora do cristianismo de Cardeal Arns. Agora me confundo. Ambos emergiram para mim talvez no mesmo período da juventude, na experiência fundante na comunidade eclesial de base, locus onde fé e política se apresentavam de maneira indissociável.
Trago a memória de acompanhar minha querida irmã, Márcia Regina, em seu engajamento no Mova. Recordo-me de uma aula em especial, quando emergiu naquela turma, sobretudo de mulheres trabalhadoras, a palavra geradora “trabalho”. Hoje vejo o quanto aquela experiência foi também central em minha formação. A palavra trabalho foi ganhando sentido a partir das vivências cotidianas de tantas trabalhadoras: cansaço, necessidade, criar filhos, sustento, exploração. Uma verdadeira hermenêutica sobre o mundo do trabalho. A metodologia de Paulo Freire abria às portas para a cidadania política, despertando para uma leitura crítica da realidade.
Com Dom Paulo vivi intensamente o engajamento pastoral, entendendo que a fé cristã conduzia a um comprometimento social e político. Aquelas celebrações ecumênicas que ganhavam espaço na Catedral da Sé eram verdadeiros atos em defesa dos direitos e da dignidade humana. A justiça e o direito não poderiam ser meros conceitos abstratos, alienados da vida real do povo. Dom Paulo ensinava e inspirava para a via da esperança em esperança.
Dom Paulo Evaristo e Paulo Freire, com a plena coragem da verdade – profetismo e parresia –, registram um legado magistral de luta, incondicional, em defesa dos direitos humanos e contra todas as formas de opressão e exploração. Na celebração do centenário da natividade de Paulus, alimentamos a esperança na construção da utopia do inédito viável, em um tempo comprometido com processos de autonomia e de emancipação.
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Adelino Francisco de Oliveira, Doutor em Filosofia, Mestre em Ciências da Religião; professor no Instituto Federal, campus Piracicaba; [email protected]; @Prof_Adelino_; professor_adelino