Camilo Irineu Quartarollo
No fundo das matas, onde o tempo essencial germina ao vento e os céus eternos beijam a terra úmida no lar recôndito dos seres, no jorro contínuo da realidade líquida dos peixes vivos, lá os silvícolas existem com seus deuses.
Quando os Krenak visitaram a cidade maravilhosa chovia e, molhados, em molambos pareciam mendigos. Identificaram-se como indígenas ao vice-governador do Rio de Janeiro, que perguntou: Quem são vocês, donde vêm? Ailton Krenak disse “somos fantasmas”.
O povo acampado no rio doce, Minas Gerais, constava no registro histórico como tribo extinta, todos mortos, aliás, declarar a extinção pode ser uma forma barata de apropriação de territórios ou de promoção do genocídio. Os povos originários são nômades ou seminômades, vagueiam conforme a oferta de alimentos ou quando acossados por mineradoras, madeireiras ou garimpeiros.
Como os indígenas vão resistir à devastação e invasões das florestas?
Ailton pergunta como “os brancos” vão resistir sem as florestas, vão comer dinheiro?
Os invasores europeus alegavam que seu deus tinha um livro e tudo lhes pertencia. O branco invade e registra em cartório os pedaços de terra. Os indígenas não, o chão e a vida não têm donos, pertencem aos espíritos ou ao grande Espírito, à vida da tribo, com sua cultura ancestral, comunitária e nômade. Ensina Darcy Ribeiro que um chefe indígena não é como um chefe branco. Índio não manda em outro índio, há um senso de respeito à autoridade e aos mais idosos da tribo e não a famosa “otoridade” branca. Exceto quando protegido numa colônia de férias, o branco teme a selva, os bichos, o silêncio, os ruídos, a subsistência e se diz civilizado em sua violência indiscriminada e quando entra na mata quer virar Tarzan ou Robinson Crusoé, impondo sua lei.
Mario Juruna, indígena Xavante dos anos oitenta, andava com gravador pelos ministérios e dizia “homem branco faz muita promessa e depois esquece tudo”. Faziam charges e riam dele. Depois de Juruna aparece Ailton Krenak, bom falante do português a dizer “O homem indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver, tem condições fundamentais para sua existência e para a manifestação de sua tradição, da sua vida, da sua cultura que não colocam em risco – e nunca colocaram – sequer a vida dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas quanto mais de outros seres humanos”.
Durante muito tempo os indígenas foram vistos como ignorantes, vagabundos, ingênuos, retrógrados, eles e as saúvas “atravancavam o progresso”. Muitas tribos foram dizimadas, muitas resistem adiando o fim do mundo. Garimpos, madeireiras e mineradoras, incendiários, investem novamente e os matam em nome do progresso esses cristãos de deus único e cruel – o dinheiro.
Nossas avós italianas mais piedosas diziam “coitado dos índios, vão acabá com as casinha deles”. E nós, vó? Como resistir a devastação do mundo, sem florestas, animais, ventos, chuvas, terra, ou mesmo companhia e sabedoria deles?!
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente judiciário, escritor, autor de A ressurreição de Abayomi.