Igreja Católica, hegemonia e intelectualidade no pensamento de Gramsci

Armando Alexandre dos Santos

 

No livro Gramsci e a questão religiosa, obra clássica,muito divulgada e publicada também no Brasil, o gramsciano francês HuguesPortelli, doutor em Ciência Política e professor na Universidade de Paris-Nanterre, sistematizou, de modo bastante didático, o pensamento do intelectual sardo acerca da religião, deixando, entretanto, a nosso ver, numerosos pontos passíveis de aprofundamentos.

Na Itália, o tema Gramsci e a religião vem sendo estudado pela católica de esquerda Emma Fattorini, que leciona História Contemporânea na Università La Sapienza, de Roma, e se especializou no estudo da religiosidade nos séculos XIX e XX, com especial enfoque nas relações diplomáticas do Vaticano com o regime nazista e o fascista, no pontificado de Pio XI (1922-1939) e nos primeiros anos do pontificado de Pio XII (1939-1958). Fattorini situou Gramsci nos seus estudos sobre a Igreja Católica, em suas relações com a modernidade, no contexto da laicização produzida em decorrência da Revolução Francesa. Dispondo de acesso aos arquivos secretos do Vaticano, produziu diversos livros que despertaram controvérsias na imprensa e nos meios acadêmicos, além de numerosos trabalhos esparsos, que despertaram grande interesse e fizeram de sua autora personagem bastante discutida e controvertida. Sobre Gramsci, especificamente, examinamos dois trabalhos seus, não muito extensos, mas profundos e elucidativos, incluídos em obras publicadas sob a égide da FondazioneIstituto Gramsci, intitulados Gramsci e lastoriadellaChiesanovecentesc(1)e  Gramsci e la questione cattolica (2).

A abordagem que Gramsci fez acerca da Igreja Católica foi bastante original, sendo até mesmo surpreendente nos meios marxistas. Rejeitou, de um lado, um anticlericalismo primário, muito em voga no seu tempo, e de outro lado também não sofreu o fascínio – como faz notar Fattorini – do mito oposto, o de atribuir a Jesus Cristo predicados de um “primeiro socialista”.

Na realidade, ao estudar a Igreja Católica, Gramsci se mostra sobretudo como político, vale dizer pragmático. Dir-se-ia que procurou estudá-la tanto quanto possível friamente, de acordo com a velha formulação de Tácito, sine ira acstudio. Não são frequentes, no seu texto, adjetivações injuriosas, juízos de valor, manifestações temperamentais ou de paixões políticas. O texto gramsciano é, pelo contrário, claro, simples, direto, sobretudo substantivo e factual. Gramsci faz, da Igreja, um estudo acurado, procurando analisar criticamente, de acordo com seus pressupostos marxistas, a história da multissecular instituição religiosa, suas origens, seu papel histórico, sua capacidade de adaptar-se às diferentes épocas, sob os mais diversos regimes, procurando explicitar as razões de sua força. Na análise que faz, da Igreja, como força hegemônica, procura tirar lições que sejam de utilidade para sua proposta de transformação da classe operária em nova classe hegemônica, tarefa que reputa imprescindível para garantir, no futuro, uma vitória estável do regime comunista em todo o mundo.

De fato, o estudo da questão religiosa, na perspectiva gramsciana, prende-se intimamente a dois outros temas que se revestem de importância axial no seu pensamento: a noção de hegemonia e, correlatamente, o papel dos intelectuais, produtores de ideologia. É no contexto desses temas e como aplicação concreta deles que a questão religiosa é analisada por Gramsci. Os limites estritos (e, sem fazer jogo de palavras, por demais estreitos) de um artigo de jornal como este impedem aprofundar, como desejaríamos, a relação da “questão religiosa” com os ricos e matizados conceitos de hegemonia, largamente explanados por Gramsci. Também não é possível repassarmos, criticamente, toda a exposição gramsciana sobre a História da Igreja Católica, em suas várias fases: inicialmente, no chamado “Cristianismo primitivo”, que parece ter despertado alguma atração em Gramsci quando ainda jovem; em seguida, na longa fase em que, segundo ele, a Igreja transformou-se em intelectual orgânica da sociedade feudal e moderna, exercendo um papel tipicamente hegemônico; em seguida, na fase em que a Igreja passou a intelectual tradicional; e, por fim, na fase em que ela, colocada pela força das circunstâncias na desconfortável condição de ter que disputar sua influência, à maneira de um partido que, nas condições de um laicismo predominante, procurava se organizar na Ação Católica, por iniciativa do Papa Pio XI.

Todos esses aspectos foram amplamente tratados por Portelli, no seu citado estudo, e também os focalizou, de modo mais condensado, Fattorini. A nosso ver, os dois citados autores são não somente indispensáveis para a intelecção do pensamento de Gramsci sobre a questão religiosa, mas de certa forma se completam. Embora ideologicamente distantes, parece que ambos têm essa noção de complementaridade. Não terá sido por outra razão que Fattorini, ainda jovem de 24 anos de idade, tenha sido convidada a prefaciar a edição italiana da obra portelliana (3), e seja convidada também com frequência a colaborar com estudos profundos, sobre Gramsci, emanados do instituto que leva seu nome.  Continuaremos na próxima semana.

 

Notas: (1) In: Gramsci e ilNovecento, A cura di Giuseppe Vacca in collaborazionecon Marina Litri. Roma: Caroccieditore, 1999, vol. I, p. 145-155.  (2) In: Gramsci nel suo tempo, A cura di Francesco Giasi. Roma: Caroccieditore, 2008, vol. I, p. 361-377. (3)Gramsci e la Questione Religiosa. Prefazionedi Emma Fattorini. Milano: Gabriele Mazzottaeditore, 1976.

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Armando Alexandre dos Santos, Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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