Meu pai

Camilo Irineu Quartarollo

 

Em todos meus livros há um pouco do meu pai que ficou em mim e, na obra Crises do filho do meio, autobiografia curta do meu existir na família da qual sou o filho do meio e escrevi em 2013. Ainda pude ler para ele já enfermo, na cabeceira de sua cama. Eu precisava resgatar minhas boas memórias e a força ancestral naquele fechamento de ciclo. Viva meu pai! Sirvo a vocês o pedaço de um capítulo:

“A conversa foi no velho rancho ao lado da casa, onde ficava a carroça empinada e os arreios, lado oposto ao pôr–do–sol. Lembro–me de pé no chão e meus pais discutiam, enquanto meu pai atrelava o cavalo e, nervoso, pulou na carroça cer­teiro, catou as rédeas e disse à minha mãe:

– Vou embora e aqui não volto mais.

O animal mais calmo que o dono foi cor­coveando sob o peso da ira deste, num repuxo foi saindo de cena, da minha vida, como podia conce­ber isso? Fiquei a olhar ele, nem sentou no banco para tocar o cavalo, indo com um pé no estribo e outro no tablado conduzindo impassível o cavalo como se fosse redomão, e eu sem o pai, pensei. A mãe me recolheu logo pela mão e não disse nada ao quase–gêmeo. No decorrer do dia passei com aquela angústia e o tempo passou nublado, toda­via fui me distraindo nos arredores, mas à tarde o barulho na cocheira. Olhei pela porta e a mãe me segurou. Era–me familiar os assopros de alívio do cavalo sem a cela e o barulho dos arreios retirados da cacunda do animal.

– O pai vortô, mãe!

Por baixo dos braços de minha mãe o vi se­reno, tirando o tapa–olhos do Sultão, tranquilo como um pecador depois de sua contrição perfeita, o trabalho de adão. Lembro–me de poucas vezes em que fui à roça, numa destas, vendo-me abriu um sorriso bem estampado e ofereceu das batatinhas do almoço que comia sentado no cabo da enxada, bem pai com seu caçula. Atrás dele o arrebol se mostrava intenso e as ramagens de batata–doce em leiras de um verde intenso e limpo da capinação. Antes de eu ir, ele arrancou uma touceira de capim num golpe de enxada, erva cidreira abundante na beira de estrada, para os nossos chás.

Entretanto, naquele dia da briga, saímos à porta eu e minha mãe. Estava com saudade de meu pai e cheguei perto dele, cobrando:

– O senhor num disse que num ia vortá mai?

– Cala a boca – adiantou–se minha mãe.

Conteve–me em minha ignorância. O pai en­trou como sempre e já nos era familiar novamente. Tudo havia passado.

À noite, meu pai ouviu meus soluços do berço – fugira de medo, do quarto dos maiores para o berço vazio dos recém–nascidos, era o ca­çula!

– Que foi, o que ocê tem?

– Tem um monstro ali no canto, pai.

– Ah, é. O pai já vai dar um jeito já–já.

De um salto brincalhão puxou o monstro pelas orelhas, abriu a boca do bicho, enfiou a mão pela goela abaixo e me mostrou.

– Ervilhas!

Verdinhas, verdinhas que tirou do saco de esto­pa à luz da lamparina.

– Sinta o chero, nenê. O pai vai vendê no mer­cado e ganhá dinhero.

Era isso que ficara fazendo o dia todo, colhendo ervilhas.”

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor do livro Crises do filho do meio, entre outros

 

 

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