Mãe do Brasil

Camilo Irineu Quartarollo

 

A santa foi retirada das águas turvas do rio Paraíba, em cujos turbilhões reapareceram cardumes até então ocultos numa noite escura de pesca, em 12 de outubro de 1717. Não era época de peixes e na lançada de rede puxaram uma santa sem a cabeça, e não peixes, na segunda lançada aleatória ainda não veio peixe na tarrafa, mas a cabeça da santa. Daí por diante, a cada tarrafada pescaram tanto que tiveram de retornar ao ancoradouro e descarregar os peixes, restaurar, instalar a santa em oratório e agradecer.

Pelo mundo, as aparições de Maria são narradas de forma gloriosa, apoteótica. Nessas narrativas de devoção a mãe de Deus aparece das nuvens, com sinais e prodígios – conforme afirmam seus seguidores e a Igreja Romana. No Brasil emergiu das águas, e negrinha, quarenta centímetros de altura com meio sorriso nos lábios e altiva. Aparece de forma contundente e solidária. Dão-lhe o nome de Aparecida, não foi achada, é fenômeno de aparição. Foi como a pesca milagrosa do lago Genesaré, na qual não houve pompa, mas nítido sinal de fé e confirmação apostólica.

A aparição traz à tona o que se tenta esconder e mascarar, a escravidão. Um dos milagres da Virgem tem o condão profético contra o escravismo, desata milagrosamente as correntes do pulso do cativo Zacarias. Escravizados, como este, muitas vezes nem conheciam suas mães e essa Maria aparecida das águas é negra. Mais uma vez, a mãe de quem foi feito Senhor de todos os escravizados de Roma se insurge contra a tirania humana e seus preconceitos.

A santa é negra por excelência como as meninas trazidas nos navios tumbeiros, embarcações essas batizadas cinicamente com nomes cristãos que não eram, como o navio Caridade.  As crianças eram raptadas na África e, por má circunstância na viagem longa de mar, as maiores consolavam as menores chorosas ou apáticas. No século XIX, a preferência de tráfico humano era por meninas para gerar cativos na senzala.

Como entreter uma criança escravizada no traslado, sem pais ou irmãos, no balanço do oceano barulhento? As mães de navio não tinham o que dar, se davam rasgando a barra dos vestidos e fazendo bonequinhas e nas piores condições de navio dando a alegria às menores em brincar com paninhos, plasmando o corpo de uma abayomi e resgatando as memórias deixadas na árvore do esquecimento. Muitas dessas crianças, agarradas às bonequinhas, eram jogadas ao mar pelos capitães para fugir ao flagrante do tráfico e dos canhões ingleses.

A exemplo das reaparições de Jesus após a ressurreição, sem nenhuma pompa, mas em poder de estar entre os seus Maria ressurge das águas – estar com os quais se ama é o maior poder.

A imagem foi coroada pela Princesa Isabel, coberta de manto azul anil, mas, antes de ser rainha, seu nome é Aparecida, batizada nas águas da imersão, com sorriso e altivez na face negra de Deus.

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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor do livro A ressurreição de Abayomi, entre outros

 

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