Camilo Irineu Quartarollo
O escritor e aviador Saint-Exupéry em seu livro O Pequeno Príncipe imortalizou sua esposa Consuelo, asmática, como “a rosa que tosse, de um planeta distante com três vulcões” – “o planeta”, El Salvador!
Rufina Amaya não era personagem de livro ou de fama, era mulher comum como muitas camponesas salvadorenhas pobres, apareceu vagando nas lembranças de um lugar, sem família. Essa desconhecida veio com histórias de filhos, vilarejo e pessoas que não existiam. Nem os animais de lá havia.
Havia um vilarejo no lugar, El Mazote. Foi lá que tudo aconteceu a despeito do negacionismo, dos gracejos e da “compaixão” dos que fingiam crer para a calar.
Amaya não se calou nem chorar mais quis, pois os seus filhos havidos ali não mais existiam, nem seus vizinhos ou animais domésticos que perambulavam pelo vilarejo e campos de El Mazote, em 1981.
O governo de El Salvador negou peremptoriamente por anos as “coisas da cabeça” daquela mulher sem os filhos mortos. Ela reafirmava ter tido os filhos e família no vilarejo, com seus animais de estimação e trabalho.
Filhos executados — disse —, ouvia-lhes os gritos deles chamando-a. Via-os detrás de uma macieira, em orações entrecortadas pelos vap dos facões exangues. Matavam até recém-nascidos! Os soldados milicianos do batalhão Atlacatl jogavam os bebês chorando para cima e os espetavam na baioneta surda e sórdida. Esses facínoras fardados se retiraram do lugar após achar que todos estivessem mortos e não contavam com a sobrevivente, testemunha e mãe.
Exceto Amaya, mataram covardemente a todos, homens, mulheres, crianças e, pasmem, os animais. Nem os cães para velar os ossos de seus donos sobraram, porque estes mais fiéis à vida que muitos homens vazios de alma, que se dizem cristãos, mas assassinos tais quais as bestas do Apocalipse.
A imprensa dos EUA e da Europa denunciavam o fato, mas os governos americano e salvadorenho negavam. Entretanto, a partir de 1992, com o trabalho de exumação pela Equipe de Antropologia Forense da Argentina e pelos membros de investigação da ONU descobriram na vila fantasma os restos mortais de mais de trezentas pessoas, mulheres, crianças e bebês mortos, cujas ossadas revelam requintes de extrema crueldade. Lá estavam os filhos de Amaya e sua história verdadeira foi desenterrada com seu depoimento verídico e corajoso perante a comissão da ONU. Aquele lugar sagrado dela existe e vive no amor das pessoas, não nas baionetas covardes.
Está provado que Amaya falava a verdade, mas ainda assim, como acreditar em tão cruel cenário?! A mulher buscava sepultar os seus enterrados insepultos, mas com as homenagens merecidas do luto. Ali nem os cães que velam seus mortos sobraram das baionetas assassinas, foram mortos os animais todos. É sabido que os cães vão à procura de seus donos e ficam sem comer ou beber por dias em luto diante de uma sepultura, e não estão em busca de um simples osso, como alegam mentes doentias.
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Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor do livro Confissões do Cardeal Tosca, dentre outros