Alê Bragion

 

Alguma coisa acontece no meu coração quando passo por baixo do antigo pontilhão da Paulista. Quero dizer, quando passo por baixo do velho pontilhão que hoje não há mais – já reparou? – pois há quase duas décadas o pontilhão – ou o que restava dele – foi retirado de seu altar-mor no seleto coração de pedra da seleta Rua Benjamin Constant (e o pior é que ninguém sabe quem foi esse tal Benjamin, mas todos se lembram do eterno pontilhão). Portal para outros tempos, outros mundos, outras veredas, o velho pontilhão ainda é visto no imaginário de quem passa correndo pela Benjamin – a pé, de bicicleta ou de carro – e adentra ao bairro da Paulista. Paulista do meu coração, os meus amores não são flores feitas de arlequinal, nem de perfumes gris ou ares de Paris. Paulista do meu coração, os meus amores são flores que brotam dentro de teu portal transcendental, que é a tua mais sincera tradução.

“Os caminhões rodando, as carroças rodando,/rápidas as ruas se desenrolando,/rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos…/E o largo coro de ouro das sacas de café”. Assim descreveu o poeta Mário de Andrade, no poema Paisagem Número 4, a cidade de São Paulo – mas bem que poderia igualmente assim ter descrito a ti, Paulista do meu coração. Tua Rua do Café, teus sobradinhos discretos – magros e de portões baixos – espalhados pelo bairro, tuas lojas quase centenárias, tuas Casas-rosários, teus mágicos bares de esquina, tuas sapatarias milenares, tuas relojoarias ancestrais que vendem até hoje relógios que marcam um tempo que não foi e que não volta mais. Paulística inspiração: forno sem inverno morno, ouro sem cinzas, luz sem bruma, sem bofetadas líricas e sem Trianon. Paulista paulística sem Mário e outros Andrades. Mas paulística por devoção. Paulística por herança, por derivação e fé a quem te inspirou, a quem te formou e te manteve no aroma leve e breve do café. Casa de tantos Alfredos, de tantos Josés, de tantos Miguéis. Cenário de modernismos sem modernidades.

Paulista paulística da estação dos poderosos e dos miseráveis. Da estação de trens agora encobertos por terras sem sonhos, de trilhos asfaltados sem comoção, devorados por tratores sem emoção nem sensibilidade. Onde teus trilhos nesta cidade, Paulista de minha inspiração? Onde teus Paulos Prados, teus barões quatrocentões, teus patrões de antanho desalinho, Paulista paulística? Onde teus trilhos batidos à mão em marretadas italianas fortes e anônimas? Onde teus apitos a vapor cuspindo o passado que ainda se ouve pelas tuas calçadas, pela tua gente que vaga apartada e apertada dentro das máquinas-ônibus soltando fumaça pelas ventas a cada ponto de suas ruas-quase-estradas-do-encantado? Onde a estação à inglesa – seus mistérios, lembranças e saudades? Bairro mais paulistano entre os nada paulistanos piracicabanos – que nome poderias ter, senão Paulista? Paulista dos domingos passados a luz de sol pleno sobre seu chão. Paulista dos sábados à noite, cada vez mais populosos, porém cada vez mais solitários. Paulista do meu coração, inspiração hoje sem trilhos e sem qualquer vagão.

Paulista da Rua da Glória inglória. Me contou uma vez uma amiga: vivia na Rua da Glória um dentista que, no tempo das mulheres-dama-da-noite, atendia às flores do bairro luxurioso da cidade. Dizia minha amiga que as mulheres-damas-da-noite vinham até ali de charrete, e desciam deslumbrantes, exibindo seus vestidos de renda, seus sapatos de cetim e sombrinhas bordadas. Minha amiga – de quem não posso revelar o nome – se dizia fascinada. Uma noite, ainda criança – e sem saber quem eram as mulheres-damas que via ali chegavam ao dentista – minha amiga disse em casa, ao pai, que quando crescesse queria ser uma mulher-dama. Paulística inspiração! O pai lhe pôs de castigo para o quase-todo-sempre-amém. Modernismos sem modernistas. As damas-da-noite tratavam dos dentes ali – glamurosas – na Paulista!

Paulista-paulística das bicas d’água do Morlet, das lojas de aviamentos e passarinhos. Paulista da praça dos japoneses que não são mais, de clubes de serviços em rodas denteadas de trabalho. Paulista dos paralelepípedos que, felizmente, ao menos em poucas ruas, ainda o são.

Bairro imagético e feliz de saudade-cidade. Sampa sem citação.

Paulista, comoção paulística de minha vida – universo quase em forma de outra quase-cidade.

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Alê Bragion, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, editor do portal Diário do Engenho e cronista desta Tribuna desde 2017

 

 

 

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