O Renascimento cultural do século XIII

Armando Alexandre dos Santos

 

O medievalista francês Jacques Le Goff (1924-2014) sempre advogou com ótimos argumentos, em sua copiosa obra, duas teses que divergem um tanto da visão convencional assentada nos livros didáticos correntes: a primeira delas é que a Idade Média não se extinguiu no século XV, mas prolongou-se até à Revolução Francesa; a segunda é que ocorreram pelo menos três Renascimentos, e não um único. Ele aponta, na passagem do século VIII para o IX, o Renascimento cultural carolíngio, de que tratamos no nosso último artigo; nos séculos XIV e XV, o Renascimento propriamente dito, que teve como origem e epicentro a Itália; e, entre ambos, o grande Renascimento cultural e artístico do século XIII.

Sou, pessoalmente, muito favorável a aceitar essas duas visões legoffianas (perdoe-se o neologismo…). Parece-me inegável que o século XIII tenha marcado o apogeu do Ocidente medieval, como realçou o celebrado mestre francês numa síntese muito feliz:

“O século XIII foi o século em que se afirmaram a personalidade e a força nova da cristandade realizadas durante os séculos precedentes. É também o momento em que se impõe um modelo que pode ser chamado, numa perspectiva de longa duração, de europeu. Ele tem seus sucessos e seus problemas. Os êxitos aparecem em quatro campos principais. O primeiro é o do crescimento urbano. Se durante a Alta Idade Média vimos realizar-se uma Europa rural, no século XIII se impõe uma Europa urbana. A Europa incarnar-se-á essencialmente nas cidades. É aí que acontecerão as principais misturas de população, que se afirmarão novas instituições, que aparecerão novos centros econômicos e intelectuais. O segundo êxito é o do saber. Atinge um número crescente de cristãos pela criação de escolas urbanas, o que corresponde ao que chamaríamos de ensino primário e secundário. A importância dessa atividade escolar varia segundo as regiões e as cidades, mas atinge, frequentemente, 60 % das crianças das cidades, ou até mais. Em certas cidades como em Reims, por exemplo, atinge também as meninas. Mas se notará, sobretudo, para a nossa finalidade, a criação e o sucesso rápido de centros que diríamos de ensino superior, as universidades. Elas atraem numerosos estudantes: apelam para mestres muitas vezes renomados e até ilustres; é lá que se elabora um novo saber, resultado das pesquisas do século XII, a escolástica. Finalmente, o quarto acontecimento, que sustenta e alimenta os três outros. Trata-se da criação e extraordinária difusão, em cerca de 30 anos, de novos religiosos que residem na cidade e são ativos sobretudo no meio urbano, os frades das ordens mendicantes, que formam a nova sociedade e remodelam profundamente o cristianismo que ela professa.” (As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 143-144).

Até o fim do século X, quase toda a vida estava adstrita ao meio rural e quase toda a cultura estava concentrada na vida monástica. Nos dois primeiros séculos do segundo milênio, com a formação de burgos e cidades, constituíram-se, nesses ambientes, novas escolas, deslocando-se a formação cultural dos mosteiros para as escolas capitulares ou catedralícias, ao mesmo tempo em que surgiram numerosos cursos livres, de mestres particulares que atraíam alunos e lhes ministravam ensino pago. Embora se mantivesse a tutela doutrinária da Igreja (mais direta no caso das escolas capitulares, menos direta, mas ainda assim efetiva, no caso dos cursos livres), pela sua própria dinâmica os novos institutos de ensino passaram a formar pessoas mais abertas para a vida temporal, com uma faixa de interesses mais ampla do que a formação anterior, que se destinava precipuamente à formação de monges. Isso produziu na cultura em geral efeitos imediatos.

Um exemplo entre muitos das consequências dessa mudança de enfoque pode ser apontado no modo de conceber e julgar o riso. Até então, nas escolas monásticas, o riso era proscrito, porque entendido como contrário à perfeição da vida monástica. A partir de então, na Idade Média, o riso adquiriu uma nova dimensão, sendo aceito e, por assim dizer, regulamentado: algo que era inaceitável para um monge, era praticável e, mesmo, recomendável para um leigo, até um leigo santo, como São Luís. É a figura do “rex facetus”, do rei brincalhão, de que trata Le Goff (São Luís – biografia. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, passim).São Luís era bem humorado e gracejava muito, mas evitava fazê-lo às sextas-feiras, por espírito de austeridade. Desenvolveu-se também muito a literatura cômica, com peças teatrais jocosas e mostrando os lados risíveis e caricatos da vida.

No mesmo contexto da vida urbana, desenvolveu-se uma ampla literatura em vernáculo. Língua vernácula – vem de verna,ae palavra latina que designava os escravos nascidos na residência do senhor. Língua vernácula significava, pois, língua inferior, falada pelos escravos ou pela camada social e culturalmente inferior da sociedade.

Todos os idiomas europeus modernos são tributários dessa literatura, já que foi a partir dela que mais tarde se sistematizaram e normatizaram. O papel do Cantar del mio Cid para o desenvolvimento do idioma castelhano, da Divina Comédia para o mesmo análogo processo do italiano e de obras análogas em outras partes da Europa é bem conhecido. Também nessa literatura, independente da orientação religiosa de fundo, que permanecia a mesma, os temas tratados e as abordagens foram cada vez mais se ampliando e se deslocando do estritamente estudado nos mosteiros, para temas mais abertos, relacionados com a sociedade temporal, com a vida corrente, com os divertimentos etc. Foi um movimento de secularização da produção intelectual o qual, note-se, não constituiu uma recusa (pelo menos na primeira fase) da austeridade medieval primeva, mas foi mais bem um desdobramento leigo (de propósito não se usa aqui a palavra laico, porque não havia oposição com o religioso-monástico), uma aplicação ao campo leigo e temporal de um pensamento longamente maturado no ambiente mais restrito dos mosteiros.

É nesse contexto que se desenvolveria o trovadorismo, que marcou o início das literaturas europeias modernas, pois se exprimiu em linguagem popular fazendo uso de línguas novas, derivadas do latim antigo. Essas línguas, que no mundo neolatino receberam durante algum tempo a designação de romanços, marcam a transição do idioma raiz para as modernas línguas usadas nos vários países europeus.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

 

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