O Renascimento Carolíngio

Armando Alexandre dos Santos

 

Como ficou dito no último artigo, Carlos, rei dos Francos e imperador do Sacro Império, realmente merece a designação de Magno, pois foi um dos maiores monarcas da História, grande chefe militar e político, administrador, legislador e incentivador de uma renovação cultural que os modernos historiadores europeus designam como “Renascimento Carolíngio”.

Colocou seu braço armado a serviço do Papado e estendeu seus domínios até o território da Polônia, a Leste, e a uma parte da Península Ibérica, a Leste, governandotambém boa parte da atual Itália. Protegeu a Europa de novas invasões provenientes do Leste e conteve definitivamente os muçulmanos na Península Ibérica, impedindo que prosseguissem sua investida além dos Pirineus.Unificou e administrou admiravelmente seu povo, foi o incentivador de uma política de incremento da cultura a tal ponto que seu tempo foi designado como de uma verdadeira renovação cultural, o Renascimento Carolíngio.

Auxiliado pelo monge Beato Alcuíno de York (c. 735-804) – homem cultíssimo e de grande capacidade de ação – Carlos Magno deu início a um amplo movimento de revitalização da cultura. A meta fixada por Alcuíno, que atuava à maneira do que seria hoje um Ministro da Educação, era fazer da Corte imperial uma nova Atenas, em nada inferior à antiga, mas inteiramente baseada no espírito cristão. Uma das muitas iniciativas de Alcuíno foi estabelecer sinais gráficos de pontuação, para facilitar a leitura, assim como também estabelecer a diferenciação em letras maiúsculas e minúsculas. Essas foram novidades, no tempo, pois até essa época tudo se escrevia em sequência, sem pontuação nem mudança de linha, e sem diferenciar maiúsculas e minúsculas – o que dificultava muito a compreensão dos textos.

Carlos não somente lhe deu apoio, mas foi propulsor e incentivador da obra de Alcuíno. Fundou a Escola Palatina, onde se ensinavam as sete artes liberais, estruturadas nos sistemas do Trivium (que estuda a Retórica, a Lógica ou Dialética e a Gramática, disciplinas referentes à linguagem) e do Quadrivium (voltado às disciplinas relacionadas com a matéria e as quantidades, ou seja, a Música, a Aritmética, a Geometria e a Astronomia).  Essa educação era chamada liberal porque se entendia que somente podia ser assimilada por quem se entregasse ao seu estudo com as mãos livres, ou seja, em contraposição ao trabalho braçal. Inicialmente, beneficiava aos que se destinavam ao Clero – qualquer que fosse a procedência social de seus familiares – e àqueles destinados à vida de corte ou ao serviço público administrativo. Mais tarde, com o desenvolvimento intelectual do século XII, o Trivium e o Quadrivium passariam a ser ensinados nas Universidades, como passo inicial ou propedêutico, para os alunos a partir deles galgarem níveis superiores em várias áreas do conhecimento.

Carlos Magno também incentivou a fundação de escolas monacais e catedralícias, assim como a sistematização de um eficiente serviço de cópias de manuscritos antigos, não somente religiosos, mas também profanos, muitos deles provenientes da Antiguidade Clássica. Do ponto de vista político, Carlos Magno precisava de muitos homens instruídos, a fim de proverem aos serviços do estado com a ampla estrutura administrativa que organizou. Mas, independente dessa finalidade prática, a documentação primária da época permite afirmar que Carlos era um homem de visão muito larga, capaz de compreender, muito além do seu tempo, todo o alcance da obra cultural que estava promovendo.Um documento de Carlos Magno dirigindo-se ao Papa permite avaliar a preocupação demonstrada com o ensino e a formação intelectual dos jovens de todas as classes sociais:

“Imploramos também de V. Santidade que os ministros do altar e Deus adornem os seus ministérios com boas maneiras, e igualmente no que respeita às outras ordens que observam uma regra e às congregações de monges, e seja-lhes permitido agregar reunir e associar a si próprios, não apenas os meninos de condição servil, mas também os filhos dos homens livres. E que se estabeleçam escolas onde as crianças aprendam a ler. Emendai com cuidado, em cada mosteiro ou bispado, os salmos, os sinais da escrita, os cantos, o cômputo, a gramática e os livros católicos; porque muitas vezes alguns desejam rezar a Deus corretamente, mas rezam mal os livros por nãoestaremcorrigidos.” (PEDRERO-SÁNCHEZ, M. G.História da Idade Média: textos e testemunhas. S.Paulo: UNESP, 2000, p.71.

A mesma preocupação com a cultura é também manifestada por Carlos Magno em uma Capitular dirigida ao Abade de Fulda, sobre a necessidade do estudo literário:“Nós temos deliberado, de acordo com os nossos conselheiros, que nos bispados e mosteiros cujo governo vos foi confiado, não é suficiente observar a regra e a prática da vida religiosa, mas que vos deveis aplicar, também, a instruir nas letras àqueles que são capazes de aprender, segundo a inteligência que Deus deu a cada um. A observação da regra contribui para o ornamento das palavras: da mesma forma que o zelo dedicado a ensinar e aprender contribui para a ordem e ornamento da linguagem. Aqueles que desejam suplicar a Deus, fazendo o bem, não devem negligenciar de suplicar falando bem. Nós temos frequentemente recebido, nestes últimos anos, cartas que nos escreveram de certos mosteiros, nas quais se fala da piedade e santas preces oferecidas a nós pelos monges. Nós temos encontrado na maior parte destes escritos excelentes intenções e uma linguagem inculta. O que uma piedosa devoção lhes dita ao coração, eles não podem expressar sem incorrer num estilo grosseiro e repleto de erros, por causa da negligência para instruir-se. Portanto, nós vos exortamos, não somente a não negligenciar o estudo das letras, mas a aplicar-vos a ele com ardor e humildade agradável a Deus, a fim de poder penetrar mais facilmente e com mais segurança nos mistérios das Sagradas Escrituras.Pois, como há nos livros sagrados figuras, tropos e outros ornamentos semelhantes, não há dúvida que cada um ao ler não capte depressa o sentido espiritual, nem sequer aquele que se encontra mais preparado para o ensinamento das letras. Desejo para esse mister homens que tenham ao mesmo tempo vontade e poder de se instruir e a vontade de instruir os outros. Nós desejamos que vós sejais, como convém aos soldados de Cristo, primeiro devoto e depois sábio. É conveniente que aqueles que vos visitam para honrar a Deus e à vida religiosa sejam edificados pelos vossos costumes e reconheçam vossa ciência ao ouvir-vos ler ou cantar, a fim de que se encham de alegria e deem graças a Deu. Não vos esqueçais de enviar cópias desta carta a todos os bispos sufragâneos e a todos os mosteiros, se quiserdes obter o nosso agradecimento.” (Op. cit, p. 170-171)

Em resumo, a renovação cultural carolíngia representou uma síntese de tudo quanto havia de melhor no passado (desde o da Antiguidade clássica até o passado dos povos bárbaros), uma reordenação e tudo quanto havia de caótico e confuso no status quo, uma sistematização e um direcionamento rumo ao apogeu que a Idade Média atingiria no século XIII.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba

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