Ave, Shakespeare!

Alê Bragion

 

Perdão, ó deuses do Olimpo! Mas não há como não converter para a língua de dia de semana o que no fio da navalha da língua inglesa escreveu o velho bardo de Stratford-Upon-Avon. Salve Sua Divindade, mister Shakespeare! Salve, ó séquito de deidades menos ficcionais, menos míticas do que consegue entender o nosso coração latino-americano catequizado à força. À benção, dear Hamlet! À benção, King Lear. Sua benção, Sir Macbeth!  À benção tantos e outros quantos que nos ensinaram o que dizemos – mesmo sem o sabermos – pelos cotovelos. Quanto de tudo o que falamos não provém de vossas bocas e mentes mais reais que irreais. Não há como fugir. Ora ou outra sentimos na língua ou no ouvido o gosto sussurrante e vocabular de vossas construções trágicas, sacramentadas pelo cânone popular da glosa mole do povo.

Misteriosamente, por vezes adotamos também argumentos literários como sendo nossas próprias convicções. Repetimos os gregos, os romanos e os elizabethanos como se citássemos um avô falecido ou um parente distante. E tudo isso, na maioria das vezes, sem a plena consciência de nossa larápia inspiração. E por quê?  Quem vai saber? Talvez porque a literatura – que assim seja – realmente esteja para além da filosofia, da psicologia, da história e de qualquer outra área do saber. Talvez porque – por empatia (como escreveu Aristóteles) – nos apaixonemos demais (e sempre) pelos mistérios – que abundam pelos ladrões – dos textos literários e suas narrativas fabulosas e fabulares. E, em se tratando de mistérios, sempre vale lembrar, então, como nos ensinou o sábio inglês, que há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia.

Por isso, Shakespeare me soca o estomago desde sempre. Esta semana mesmo, seu soco verbal me abateu, me dobrou. Quando menos esperava, senti seu hálito quente na hora do café da tarde. Cruz-credo. Disfarçado de um colega professor, o texto shakespeariano me tomou de assalto. “O que é a vida” – ouvi desse colega – “senão uma cena, uma história na qual somos péssimos atores?” – me perguntou ele. Não tive tempo de engolir o café. Shakespeare estava ali, estalando meus sentidos. Perguntei ao meu vespertino amigo-filósofo de onde ele havia tirado essas inquietações em plena tarde de segunda-feira. Ele me respondeu: “da vida.” Engano seu, eu disse. Isso é Shakespeare. Ou, melhor dizendo, isso Macbeth. E citei a ele um trecho da peça: “a vida é uma sombra errante, um pobre comediante que se pavoneia no breve instante que lhe reserva a cena, para depois não ser mais ouvido. É um conto de fadas, que nada significa. Narrado por um idiota cheio de voz e fúria.” Ele adorou. Me disse que iria procurar a peça na internet – (afinal, para que servem mesmo as bibliotecas?) e saiu. Pobre Shakespeare. Os tempos são outros.

No final de um enterro de um amigo querido, dia desses, Macbeth me apareceu de novo. Findando-se a cerimônia triste, palmas surgiram em homenagem ao morto. (Nunca entendi bem por que, às vezes, as pessoas batem palmas ao morto na hora do enterro). Talvez Shakespeare realmente tenha razão. Se a vida é uma peça da qual somos atores, só nos restam as palmas no ato final – quando a cortina se fecha. Fiquei em dúvida se aplaudia meu amigo ou não. Era ele um homem discreto, avesso a grandes públicos, tímido e nada artístico. Talvez, se pudesse, tivesse proibido previamente as palmas. Mas não pode. Não teve tempo. A cortina se fechou antes que ele pudesse dizer sua última fala. Quer dizer. Como um péssimo ator, talvez não coubesse a ele uma última fala. Palmas. O jeito foi aplaudir. E dar vivas a Shakespeare – pois, como ele escreveu, “somos do tecido de que são feitos os sonhos.”

Ao final, talvez, a vida se resuma mesmo a uma questão shakespeariana – a um “to be or not to be” (ou a um “Tupi ou not Tupi” – como parodiou nosso antropofágico Oswald). Talvez – parodiando eu mesmo o mestre de Stratford –, e resolvendo sua fórmula metafísica com o uso de ares orientais e taoístas, possamos dizer, quem sabe, que o imbricado da questão não seja o “ser ou não ser”, de Hamlet. Mas sim, como queria outro velho sábio, esse lá da China, o “ser O não ser”. Será? Quem sabe? Que os deuses do Teatro nos guardem. Amém!

___

Alê Bragion, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, editor do portal Diário do Engenho e cronista desta Tribuna desde 2017

 

 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima