Alê Bragion
Lento. Calmo e lento. Um vibrato-hiato-aberto vai e vem. Vai e vem. Vai e vem. Grave. Muito grave. E lento. Gravilento. Sento-me à alma-voluta – vagarosa e breve, semi-breve – e traço no ar, com o arco, um movimento baço. Arco-baço. A correr sozinho pela corda-cobra-sonora-e-sombra como uma ave densa que ecoa lenta (e grave) pelo vento, incerto e leve, entre as árvores. Uma corda é certa. Uma coisa é feita.
Olho a fresta da rua que anuncia o dia, o dia-tarde que sobe em oitavas-frias – neblinas da manhã desfeita. A nota longa se encerra e encerra também a sesta que se dorme à margem, em sonho. Então, como num hino que exalta a luta, correm ao meu violino cem dedos em peleja bruta. Em estocadas fundas, troco arcos em planos-sequência – enquanto, com violência, a janela bate suas folhas ribombando notas a cravejar os muros em cadência.
Pés. Chão. Pés. Chão. Tríplice, lúgubre, ácido. Pés. Chão. Pés. Chão. Vívido, lívido, cálido. Pés. Chão. Pés. Chão. Pausa. Um acidente. Um estranhamento. Retomo a rota. Pés. Chão. Pés. Chão. Desvãos em desejos, memórias, recordações. Pés. Chão. A dança avança pela pauta, pela porta, em letras sem canções cantadas em movimento. Pés. Chão. Ora rápido, ora lento. Pés. Chão. Pés. Chão. Marcha que não mais tem volta. Pés. Chão. Tempo-terno-ternário. Ora simples-composto. Ora falso-binário. Pés. Chão. Pés. Chão. Marca-passo, coração.
Respiro-vibro em meio ao tango que tenho nas mãos – a rebentar posições e a calejar meus dedos-tentáculos colados sob a embarcação em que me levo ao alto-mar harmônico. Agarro-me, então, todo torto a esse braço-espaço – e me sustento. Madeiro-me em veios antigos – antigos mastros. Velo-me em marés de acordes, em ondas de arpejos, em vagalhões de ligaduras, de claves, de anseios e pejos. Dedilho-me em frases estanques, em células rítmicas alquebradas, em tristezas solfejadas em silêncios momentâneos e breves. Depois, volto novamente à vida – composição difícil de ser ouvida.
Às vezes, tomo poções caprichadas de alucinógenos-do-existir e deixo a alma cocha voar frouxa pelas sérias árias do sentir. Sinto depois que toquei demais as canções do amor-demais que pouco e tanto conheci. E paro. Deito o violino sobre o estojo claro – mais claro do que tudo o que já vivi – e descanso a música que nele espera. E espero. Junto dele e junto dela espero. Espero por novas eras que hão de vir. Espero por novas forças que hão de vir. Espero por novas notas, por novas rotas, por novos meios – por novos seios de onde partir. Depois, sem mais ter o que esperar – e, às vezes, sem acreditar que posso esperar por mais outro algo-nada – deito novamente o arco sobre a corda inanimada e intento fazer dela a ânima-alma do sentir. E a crônica-em-canção, piazzolada, vibra outra vez e outra, outra vez e outra.
Desço nuvens, aporto em céus medonhos. Encontro abismos solares, interestelares conjugações, advérbios sem sopro, adjetivos sem ópio. Traço e retraço as linhas no encalço de rubras preposições de colcheias, em flexíveis grupetos de síncopes, em enxurradas de fusas difusas, diáfanas. Acelero o passo, astro, laço nuvem. Movem-se as metas, cruzam-se as reta e arestas imperfeitas. Respiro, respeito, no peito um momento se crê portenho. Depois, novamente acelero. E peço pressa. E chego ao ápice, ao vórtice veloz das profusões. Agora, pouco há para ser dito-tocado e feito. Em efeito, arco imaginado retorna a seu estado, ao estojo, justo e perfeito.
E num redescobrir-me assim calmo e por fim tranquilo, entendo com o ouvidos que a acreditar é seguir caminho. Afinal, que tem fundo musical que se faça ouvir. Porque – como já disse há tempos idos – existir, sem música, não faz sentido.
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Alê Bragion, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp, editor do portal Diário do Engenho e cronista desta Tribuna desde 2017