Mortes silenciosas

Camilo Irineu Quartarollo

 

O governo anunciava que por semanas consecutivas caíam as internações por Covid-19, mas agora parou de cair. Enquanto os países todos não erradicarem o vírus teremos variantes como esta da Índia. Se voltarmos tudo como antes mais cidadãos quedar-se-ão mortos pela epidemia que não acabou.

Na minha infância em Piracicaba, a gente ouvia de casa os sinos do Cemitério da Saudade a cada vez que chegava um caixão. Minha mãe suspirava e dizia “meu Deus, mais um que se vai”. Ora, eram estranhos, gente que não conhecíamos, não entendia porque minha mãe ficava assim. Por certo ela tinha mais perdas com mortes que eu que nem pensava nisso. Para mim, de pensar ingênuo a morte era coisa de pessoas velhas, de estranhos.

A visitação aos cemitérios era comum na minha infância e cultivado pelos meus velhos tios da família da minha mãe. Fui várias vezes com um tio dela, um senhor gordo e benzedor antigo, a quem fiz companhia. Tio Carlos dava voltas e conhecia todo o arruamento mais que os coveiros. O tio, com idade de avô, parava na frente das estátuas e de túmulos para recontar sobre as lápides e arte mortuária e parecia ressentir a mesma dor e indignação pelas mortes. Para mim, lembro, eram somente pessoas mortas, distantes, que nunca vira mais mortos do que estavam, congelados na fotografia antiga das lápides. Contudo, a expressão facial do tio me dizia outra coisa… tirava o lenço para enxugar alguma lágrima furtiva e seguia em frente. Ora, meu pai dissera que homem não chora! Pensava que esse meu tio velho fosse um maricas, mas com a idade fui vendo outros marmanjos chorões e por fim, não sei como, nem por quê, mas sem querer, eu também entrei para esse rol do homens chorões certa vez. Não foi, pai?

Conhecia todos esses mortos das conversas que criança não punha pitaco, só ouvia, mas agora posso falar e até escrever.

A morte tem um forte conteúdo religioso, os véus, a interiorização, a apresentação ao altar onde o vírus também está presente. A morte está entre nós, em nós, contra nós e a pergunta do sentido da vida se faz mais presente.

Por certo, a morte nasce com a gente, que ao nascermos já estamos morrendo. Somos alguns segundos desde a era cenozoica. Nascemos num momento e noutro já estamos mortos diante dos tempos imemoráveis da humanidade. A autopreservação continua retinindo nas mentes, no mais profundo do cérebro reptiliano e quando perdemos pessoas próximas sentimo-nos diante da morte e com medo. Após sofrer o luto, relutando, ressentidos, sentimo-nos em nossos entes in memoriam.

Ademais, os mortos governam a vida dos vivos. Vemos filmes de pessoas mortas, de artistas mortos, de autores mortos, imagens de gente morta como se vivas fossem. Os livros de nossas estantes são na maioria de poetas mortos, de filósofos mortos e alguns cruéis. Por fim, falamos de nossa própria, antes de que ela nos cale. A vida continua.

_______

Camilo Irineu Quartarollo, escrevente e escritor, autor do livro O Efeito Espacial, dentre outros

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima