Ainda sobre o romantismo brasileiro

Armando Alexandre dos Santos

 

Nosso último artigo versou sobre como apresentar o romantismo do século XIX aos alunos de nosso tempo, devidamente contextualizado e chamando a atenção para o que, em nosso tempo, há de parecido e de dissemelhante do ambiente em que vicejou aquela escola literária, em meados do século XIX.

É muito importante que os alunos compreendam bem o grande problema existencial e identitário que tinha o Brasil nas duas ou três décadas após a Independência. Esse problema deve ser desde logo exposto de modo didático e pormenorizado, e deve ser recordado nas várias aulas em que se tratar do assunto, porque constitui um fundo de quadro indispensável para o entendimento do tema.Bem entendido esse problema, pode-se passar à parte prática, ou seja, à análise de textos de época.

Um primeiro texto muito apto a ser considerado é a “Canção do Exílio”, do maranhense Gonçalves Dias (1823-1864), que inicia com os famosos versos “Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam,/ Não gorjeiam como lá.” Foi composta em Coimbra, em 1843, tendo o poeta apenas 20 anos de idade.  O docente deve explicar quem foi Gonçalves Dias e qual foi o seu papel na literatura brasileira, destacando que nessa poesia ele idealiza e arquetipiza o Brasil, como a terra ideal, das mil maravilhas, superior a todas as outras do planeta. Deve mostrar como essa postura se inseria bem na cultura geral da primeira metade do século XIX, quando todas as nações europeias também procuravam empenhadamente afirmar suas próprias identidades. Depois, ler com a classe, em voz alta, a poesia, ou melhor, incentivando os próprios alunos a declamá-la. À medida que se faz a leitura, ir destacando os aspectos literários, a sonoridade, a beleza, o vocabulário, a métrica, a rima, o ritmo dos versos. Chamar a atenção para o fato curioso de o poema inteiro não conter um único adjetivo, embora a escolha e a sucessão feliz dos substantivos tenha tornado inteiramente dispensável o recurso aos adjetivos.

Numa outra aula, pode ser analisada, com idêntica metodologia, a composição poética “Minha Terra”, de outro autor da mesma escola literária, o fluminense Casimiro de Abreu (1839-1860), escrito igualmente em Portugal, no ano de 1856. Assim principia: “Todos cantam sua terra, / Também vou cantar a minha, / Nas débeis cordas da lira / Hei de fazê-la rainha. / Hei de dar-lhe a realeza / Nesse trono de beleza / Em que a mão da natureza / Esmerou-se enquanto tinha. / Correi pr’as bandas do sul: / Debaixo de um céu de anil / Encontrareis o gigante / Santa Cruz, hoje Brasil; / É uma terra de amores / Alcatifada de flores / Onde a brisa fala amores / Nas belas tardes de abril. / Tem tantas belezas, tantas, / A minha terra natal. / Que nem as sonha um poeta / E nem as canta um mortal ! / É uma terra encantada / Mimoso jardim de fada / Do mundo todo invejada / Que o mundo não tem igual.”

É importante destacar que a poesia foi composta em Lisboa. A poesia comentada anteriormente, de Gonçalves Dias, tinha sido composta em Coimbra. Nos dois casos, portanto, os poetas se sentiam exilados e cantavam as mágoas e dores do exílio.É preciso insistir bastante, com os alunos, no caráter patriótico dos cantos. Lembrar que isso correspondia a uma necessidade psicológica dos brasileiros daquele tempo. Os poetas apenas exprimiam um sentimento que era compartilhado por todos. Daí o grande sucesso que obtinham.

Em outra aula, ainda, pode-se seguir o mesmo procedimento das anteriores, começando por recordar o problema existencial e identitário vivido pelo Brasil na época, mas falando mais especificamente da idealização do indígena, que na construção da identidade nacional era assemelhado aos grandes heróis do passado medieval europeu. Falar especificamente do romancista José de Alencar (1829-1877), que criou a tríade de heróis míticos indígenas: 1) Peri, o guarani que vive um romance com a filha de um fidalgo português; é apresentado com a nobreza e a valentia de um cavaleiro medieval; 2) Ubirajara, o senhor da lança, o índio que emula em nobreza e elevação de sentimentos com Peri; 3) Iracema, a virgem dos lábios de mel, a indígena cearense pela qual se apaixonou o português Martim Soares Moreno e que representa uma espécie de grande matriarca do Ceará e, mais amplamente, de todo o Nordeste brasileiro.

Ler um trecho do primeiro capítulo do romance Iracema, mais uma vez saboreando, com os alunos, os aspectos literários do texto, que inicia: “Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba, verdes mares que brilhais qual rútila esmeralda, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros” (não garanto a exatidão, porque estou citando de memória; ainda sou dos tempos pré-históricos em que se decorava o primeiro capítulo de Iracema, na primeira série do Curso Ginasial. Meus amigos Evaldo Vicente e João Umberto Nassif também devem ter decorado, pois somos coetâneos…)

Mostrar a riqueza do vocabulário, incentivando os alunos a procurarem, no dicionário, o significado das palavras desconhecidas. O ideal é levar um dicionário e o professor fingir que ele próprio não conhece algumas palavras, incentivando um dos alunos a procurar ali mesmo o significado e esclarecer a todos. Isso pode dar muita movimentação e animação à sala.

Muitas outras passagens dos romances alencarinos, ou dos poetas indigenistas, podem ser aproveitadas. No final, deve-se chegar ao fecho da série de aulas. É, em certo sentido, a mais importante de todas. Consiste numa conversa, com a sala, sobre um assunto bem atual, relacionado com o drama existencial vivido e vivenciado pela primeira geração romântica.

Consiste em lançar a seguinte pergunta: será que nós, brasileiros desde início de século XXI, não estamos vivendo um drama parecido? – Será que a cultura autenticamente brasileira, aquilo que exprime a nossa nacionalidade, a nossa especificidade, não está sendo ameaçada? – Será que não estamos presenciando, nesta era de informática e globalização, a uma nova forma mais sutil (e portanto mais perigosa) de colonização cultural vinda de outros países? – O que vocês acham a respeito? – Vocês seriam capazes de indicar alguns fatos indicativos dessa tendência, nas modas, nos ritmos, nas comidas etc. – Como será que um Gonçalves Dias, se vivesse hoje, pensaria a esse respeito? Alguém tem alguma ideia? E como vamos nós fazer, para enfrentar esse problema? – Podemos pura e simplesmente imitar os poetas do passado e sair compondo raps a esse respeito? Ou haverá outros meios?

Em suma, a proposta é fazer com que a última aula seja, a partir dos textos analisados nas aulas anteriores, uma reflexão crítica da sala de aula.Parece-me que um professor que desenvolva inteiramente esse projeto de aulas por certo abrirá os olhos dos estudantes para as belezas escondidas da nossa literatura e os incentivará à leitura. Mais ainda, despertará neles um autêntico senso crítico.

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Armando Alexandre dos Santos, licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e dos Institutos Históricos e Geográficos do Brasil, de São Paulo e de Piracicaba.

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